quarta-feira, 13 de abril de 2011

Hábitos, Costumes e Rebeldia no Recife de Nassau

 

Recife do século XVII, pintura de Frans Post de 1635.

clique na foto para ampliá-la


O Recife do Século XVII, durante o domínio holandês, revela as dificuldades encontradas por Maurício de Nassau em manter a ordem e a disciplina de um povo diversificado de etnias distintas e anseios contrários ao de seu governante. Além da ociosidade, carência e infinita saudade de suas verdadeiras raízes. As condições precárias e a falta de perspectivas, além do abandono. Levaram a população à rebeldia na Cidade Maurícia. Como revela Gaspar Barléu que mostra o estudo das condições de vida e comportamento da população recifense que era pouco mais de 3.000 habitantes, e o relacionamento entre holandeses e a população local. O livro revela que Maurício de Nassau tinha um trabalho árduo em relação a população, em mantê-la dentro da lei e da disciplina e o restabelecimento da ordem. Barléu revela que Nassau queria consertar pau nascido torto, isto é, tentar organizar a república, disciplinar os costumes e abusos, sujeitar os cidadãos às novas leis vigentes. O desregramento era regra geral e, para impedi-lo, coíbia com penalidades severas os vícios tipicamente alastrados nos primórdios das dominações novas.

Os holandeses primeiro tinham aberto o caminho para o poder e depois o iam abrindo para o desregramento, pois, à falta de um governante direto e com a longa distância mantida pelos dirigentes supremos, a virtude virara coisa entediante e pouco praticada e, enfraquecida a disciplina, o povo da terra misturavam-se com os conquistadores, o mulherio se entregava fácil aos soldados batavos, que trocavam seus armamentos pelos prazeres, os negócios pelos ócios, a baderna começava a imperar, manchando de maneira vergonhosa, a boa fama de sua nação com a impiedade, os furtos, o peculato, os homicídios e a libidinagem. De modo, que era preciso agir com punhos de aço para manter a ordem e trabalhar pelo progresso da colônia conquistada, onde todos os crimes eram divertimento e brinquedo. O que não ocorria na Holanda onde as leis eram bastantes severas com esses tipos de delitos. Os batavos costumavam dizer quê: “Além da linha equinocial não se peca”, como se a moralidade não pertencesse a todos os lugares e povos, mas somente aos setentrionais, e como se a linha que divide o mundo separasse também a virtude do vício.

Já no livro de Hermann Watjen, Das Hollaendische Colonialreich in Brasilian revela o relacionamento entre batavos e pernambucanos e as condições de vida nos primórdios do Brasil-Holandês. Destaca os problemas advindos, libertinagem existente na Capitania duartina, na qual os costumes eram livres, a imoralidade era um fato banal, a prostituição era enorme. E com a chegada de gente nova do povo, vinham, no meio levas e levas de mulheres perdidas e rameiras, as quais mais infeccionavam os costumes da terra. Hermann afirma ainda, que a imoralidade dos costumes agravava-se com a situação da colônia. Os fazendeiros e campônios vinham à cidade do Recife para satisfazer os seus vícios; aí encontravam soldados que, licenciados um momento das lutas de emboscadas, vinham refazer-se e gozar nas ruas da cidade; iguais instintos e apetites moviam os marinheiros desembarcados de viagens longas. A Holanda estava longe; e se lá havia leis e restrições, aqui as mocidades tinham seus desvarios, convinham viver e deixar viver, e prestar o culto a Vênus e a Baco. Era a anarquia, o caos, a mais desbragada licença. Não tinham conta os adultérios e as infidelidades femininas. A bigamia de colonos que deixavam na Europa as mulheres legítimas era freqüente e vulgar. Maior torpeza era da sodomia.

Com prudência e severidade, Maurício de Nassau ia cortando o mal pela raiz, corrigindo erros e punindo delitos, de maneira que “ a justiça, a equidade, a moderação, quase enterradas no país, foram restituídas às cidades,vilas e aldeias”, restaurando-se a reverência à religião, o respeito ao Conselho Político, o vigor das leis, oferecendo-se segurança aos cidadãos, garantindo-se a propriedade individual, e “a cada um voltou ou foi imposta a vondade de cumprir com os seus deveres: Os dignos obtinham muito facilmente as honras, como os indignos e criminosos os castigos.


Em 14 de janeiro de 1638, o Conde Maurício de Nassau, fez um estudo profundo sobre a população do Recife, transformando em relatório aos chefes Supremos da Holanda, detalhando costumes e comportamento de seu povo. Em alguns trechos revelam que: os moradores em geral, esses são livres ou escravos. Os livres são holandeses, portugueses e brasilienses. Os holandeses se dividem em pessoas obrigadas a servir ou particulares e dispensadas do serviço. Os holandeses isentos são os que vieram da pátria como particulares, ou aqui se fizeram tais; visto como para termos soldados sem despesas da Companhia, e para povoar a terra, já temos dispensado do serviço a um número considerável de oficiais e soldados, quando estamos certos de terem servido aqui quatro anos completos, sem contar o tempo da viagem. Mas isto não basta para colonizar tão imensas terras, e muitos procuram ser dispensados do serviço somente com o fim de partir depois à sua vontade em navios fretados para a pátria, como por vezes temos observado.

Os particulares, que até o presente têm vindo da Holanda, são pela maior parte mercadores e seus fâmulos, e os de menor condição são taverneiros (comerciantes de bebidas a varejo) ou pessoas que exercem algumas pequena indústria, e a eles se deve o grande aumento que têm tido o Recife e Antônio Vaz (a ilha), que agora são duas vezes maiores do que eram antes, e se acham com uma edificação continuada. Mas isto também não basta, e é de pouca consideração em relação à população que se faz mister.


A terceira espécie de gente livre são os índios, que vivem em suas aldeias sobre si, e debaixo da inspeção de capitães holandeses. Alimentam-se de mandioca e de outros vegetais, de que tomam o quanto lhes parece necessário para a sua sustentação, e quanto ao mais vivem despreocupados, sem ter disposição alguma para granjear riqueza. Contentes com um possuir uma rede onde durmam e alguns cabaços por onde bebam, o seu arco e flechas, a sua farinha, a sua boa água e a caça que vão buscar nas matas para se alimentar. Trabalham somente para ganhar para si e suas mulheres o pano que seja necessário para cobrir seus corpos, e consideram bastante que suas mulheres vistam uma camisa de pano pendente até o chão, e eles mesmos obtenham alguma roupa que lhes permita trazer uns calções e um gibão, ainda que sem camisa. E se não fora esta inclinação, não trabalhariam; somente para ganhar isto são levados ao trabalho, e não querem trabalhar senão até que tenham ganho, quanto muito, oito varas de pano grosso ou alguma pouca roupa, o que de ordinário correspondente a 20 ou 24 dias de trabalho. Voltam então às suas aldeias, dizendo que já possuem o bastante, e de nada mais precisam, e não se deixarão empregar em trabalho algum, salvo se forem forçados pelos seus capitães holandeses. Os serviços que mais se empregam os índios são cortar lenha para os engenhos, plantar canas, limpar os canaviais, conduzir e dirigir os carros (de bois), guardar o gado e outros misteres semelhantes; e estes serviços eles não farão se, além de alimento, a paga não for primeiramente depositada nas mãos do seu capitão para lhes ser entregue quando houverem preenchido o tempo e terminado o trabalho. Eles vivem presentemente em muitos lugares, mas sem culto algum por falta de pessoas que os instruam em sua língua e os procedam nas suas orações. Com efeito, não temos pessoa idônea para mandar às aldeias, e eles mesmos afastaram de si os católicos, a quem não querem mais admitir.


os escravos, eram formados em três categorias, isto é, são da costa da África, do Maranhão ou naturais destas terras. Os da costa da África são de Angola, ou dos lugares onde a Companhia tem trato. Os de Angola são aqui tidos pelos melhores, já porque melhor se prestam ao trabalho, e já porque, sendo recém chegados, melhor são instruídos pelos negros velhos, pois que eles entendem a língua uns dos outros. Os que porém a Companhia obtém na costa de Ardra são cabeçudos, tardos e dificíes de se empregar no trabalho, se bem que, quando querem faze-lo, trabalham muito mais que os de Angola. A princípio não sofrem nenhum governo rigoroso, levantam-se todos no campo contra os feitores que os dirigem e os moem de pancadas, ao que dá causa falarem eles uma língua que os nossos negros velhos não entendem, nem pessoa alguma, resultando em equívocos.


Os portugueses, sem distinção de pessoas, são pouco curiosos com relação às suas casas e economia doméstica, contentando-se com uma casa de barro, contanto vá bem o seu engenho ou a sua cultura. Possuem poucos móveis, além daqueles que são necessários para a cozinha, cama e mesa, e não podem ser dispensados; o seu luxo consiste em servirem-se à mesa de baixela de prata. Os homens usam pouco de trajes custosos, vestem-se de estofos ordinários ou ainda de pano, trazendo os calções e o gibão golpeados com grandes cortes por onde se deixa ver um pouco de tafetás. As mulheres porém vestem-se custosamente e se cobrem de ouro; trazem poucos diamantes ou nenhum, e poucas pérolas boas e se ataviam muito com jóias falsas. No tocante quadros e outros ornatos para cobrir as paredes, os portugueses são destituídos de toda a curiosidade, e nenhum conhecimento têm de pintura. Não há profusão nos seus alimentos, pois podem sustentar-se mui bem com um pouco de farinha e um peixinho seco, conquanto tenham galinhas, perus, porcos, carneiros e outros animais de que também usam de mistura com aqueles mantimentos, sobretudo quando comem em casa de algum amigo.


Têm belíssimas frutas, como laranjas, limas, limões, melões, melancias, abóboras, pacovas, ananazes, batatas, maracujás açu e mirim, araçás, goiabas e a formosa e agradável mangaba, bem como vários legumes, milho, arroz e outros frutos de que fazem diversidade de doces. Estes são mui sadios, e deles comem em quantidade. Os homens e as mulheres portuguesas pouco têm de bonitos: são secos de rosto e corpo e a pele é trigueira ou morena. De ordinário as mulheres ainda moças perdem os dentes, e pelo costume de estar de contínuo sentadas,não são tão ágeis quanto as holandesas, andam sobre seus chapins como se tivessem cadeias nas pernas. Os homens são mui ciosos de suas mulheres, e as trazem sempre fechadas, reconhecendo assim que os de sua nação são inclinados a corromper as mulheres alheias. Há muitos carpinteiros, pedreiros, ferreiros, caldeireiros, oleiros, alfaiates, sapateiros, seleiros, ourives, alguns, mas muito poucos tecelões que fiam algodão. Assim, Maurício de Nassau definiu seu povo no Recife e seus arredores.


Em 29 de Outubro de 1639, o holandês Adriano Van Der Dussen embarca para a Holanda conduzindo um vasto relatório sobre o comportamento e os problemas existentes associados a nova colônia. Alguns trechos relativo a população do Recife, relata: ...Para o trabalho dos engenhos e da lavoura, os holandeses vindos da Europa, não se adaptam e reivindicam a aquisição dos escravos africanos. Os holandeses ainda mesmo que tenham o corpo muito exercitado, não toleram essas tarefas, por enervar ainda os mais fortes ou a mudança do clima ou a da alimentação, quanto neles imperceptivelmente a preguiça e o torpor, de modo que a desídia, a princípio odiada, começa por fim a ser-lhes agradável.




Os portugueses, esta é a segunda categoria dos habitantes ou se estabeleceram no Brasil há muitos anos atrás, sob o domínio dos seus compatriotas, ou então, pertencendo à seita judaica (judeus), transmigraram recentemente da Holanda para ali. Compram terras e engenhos e os exploram com diligência. Os mais deles habitam no Recife e forcejam por dominar quase todo o comércio. Outrora, foram na maioria senhores de engenho e hoje compram aqueles cujos donos fugiram em conseqüência das guerras. Têm ele só seus trabalhadores, que plantam cana e fabricam açúcar, tarefa até hoje negada aos nossos patrícios, por lhes faltar perícia de temperá-lo e de purga-lo, embora sejam capacíssimos noutras artes. Entretanto, não toleram também os portugueses esses afãs, ordenando-os aos negros, mais aptos para ser mandados do que para trabalhar. Os portugueses em maioria nos são infensos, mantendo-se quietos só pelo terror, mas, apresentando-se-lhes ensejo, mostram-se contra nós desaforados e descomedidos em palavras. Antepõem a sua vantagem à boa fama e à lealdade; ocultam contra nós a sua cobiça e os seus ódios, e assim temos esses inimigos dentro das nossas muralhas, no próprio coração das cidades e dos povoados.


Os brasileiros, povo antigo, indígena e senhores do país, não se mesclam aos portugueses, mas vivem deles segregados em suas aldeias, habitando casas cobertas de folhas, de forma ablonga, sem decência nem beleza. O mesmo teto abriga quarenta ou cinqüenta deles. Noite e dia conservam-se deitados em leitos suspensos à maneira de redes (chamam-lhes hamacas), sem nenhuma separação de paredes. Sem fazer caso de qualquer alfaia, exceto essas redes e copos de beber, a que dão o nome de cabaças, e nos potes de barro, julgam supérfluo possuir qualquer outro traste. Todo o seu apresto bélico são setas e arcos. Cada habitação tem ao redor seu mandiocal e seu feijoal. Esses indígenas, quando não travam guerras, passam muito tempo na caça e maior ainda na ociosidade. Gostam menos dos frutos plantados que dos silvestres e nativos. Matam a fome sem manjares delicados, mas não mostram a mesma temperança quanto à sede, porque para eles é menos vergonhoso atravessar o dia e a noite bebendo. De raízes de mandioca esmagadas nos dentes e dissolvidas na água preparam uma bebida, deixando-a azedar, e uma outra dos tubérculos da taioba, conforme a sazão do ano.


Vivem dia por dia, descuidosos do trabalho e solitos somente com bebidas e com os panos de que fazem para as mulheres camisas e para a si uma vestimenta exterior. Não se importam com dinheiro, a não ser para comprarem vinho espanhol e aguardente. Alentados pela promessa e esperança destas coisas, suportam alegres quaisquer labores, e sem elas os toleram de mau grado e um tanto tristes. Põem á frente de cada uma de suas aldeias um chefe, mais para exemplo e admiração do que para mandar. Designam um principal para cada uma das casas, ao qual obedecem espontaneamente, aprendendo da natureza que não se pode reger uma multidão sem a concórdia entre governantes e governados. Além disso, a cada uma das aldeias preside um capitão holandês, que tem por ofício avisar dos trabalhos os preguiçosos e os tardos, e acautelar que não sejam fraudados da sua paga pelos senhores de engenho. Ajustam seus trabalhos por 20 dias seguidos, transcorridos os quais, dificilmente seriam persuadidos a novos, e não esperam o pagamento, mas, incrédulos de receber a soldada, exigem-na antes de executarem a sua tarefa. Daí resulta que, fugindo, enganam os senhores de engenho. As mais das vezes se ocupam em cortar madeira para uso dos engenhos. Hoje, porém, pela escassez e carestia dos negros, são empregados também noutros afãs, e, não os sabendo, antes querem fugir perfidamente que fatigar-se com o trabalho. Muito inclinados à guerra, temem procurar com o suor o que preferem procurar com o sangue, não tendo nenhum escrúpulo de desertar de suas parcialidades e bandeiras. Sempre que se fazem levas nas aldeias, escapolem-se antes de ser intimados. Sujeitam-se com dificuldade à mesma disciplina dos nossos, recebendo saldo menor. São terríveis para os inimigos, não tanto pela força quanto pela fama de ferocidade. Perseguem acérrima e ferozmente aos os fugitivos. A ninguém perdoam a vida.


A terceira classe de escravos são os africanos, dos quais são os angolas os mais trabalhadores. Os Ardras (povo antigo, da atual República do Benin), muito preguiçosos, teimosos e estúpidos, têm horror ao trabalho, com exceção de pouquíssimos, que são mais caros por tolerantíssimos, do serviço. Os de Calabar têm pouco valor em razão de sua preguiça, estupidez e negligência. Os negros da Guiné, os da Serra Leoa e os de Cabo Verde são menos próprios para a escravidão, porém mais polidos, mostrando mais gosto para a elegância e para os enfeites, principalmente as mulheres. Empregam-nos por isso os portugueses nos serviços domésticos. Os do Congo e do Sonho são os mais aptos para os trabalhos, de sorte que é do interesse da Companhia tomar em conta o tráfico destes, unindo-se por laços de amizade os condes do Congo e do Sonho.


Por: Jânio Odon.
Fonte: Cronologia Pernambucana, vol.3, de Nelson Barbalho; História de Pernambuco, de Célia Siebert, Editora FTD.



Nenhum comentário:

Postar um comentário