domingo, 22 de outubro de 2017

O Centenário da Independência e a história do gazeteiro Mané Beiçola, de Água Fria

Mané Beiçola, o ex-gazeteiro transformou-se no vendedor de miúdo no Córrego São Sebastião, em Água Fria. Foto: Diário de Pernambuco/1972.

Nas minhas pesquisas, sempre que encontro artigos que considero interessantes relacionados ao povo ou a região onde fez ou faz parte da minha vida e do meu cotidiano, sejam fatos ou personagens remotos ou antigos escondidos nas prateleiras e armários das bibliotecas e no arquivo público de nosso Estado, onde possivelmente você jamais tomaria conhecimento. Eis que estou aqui para relatá-los. 

O Diário de Pernambuco na edição do dia 1º de julho de 1972, conta a história de Mané Beiçola, um garoto nascido no Alto José do Pinho, que durante 16 anos foi gazeteiro no Recife nos anos 20 do século passado e que após 40 anos o repórter do Diário de Pernambuco o reencontra como vendedor de miúdos no Córrego São Sebastião. O motivo da entrevista estava relacionada as comemorações do centenário da independência do Brasil.

O pesquisador e jornalista Tadeu Rocha relatou a história no Diário de Pernambuco da seguinte forma:

No ano do Centenário da Independência, o Recife possuía perto de 245 mil almas e era a quarta cidade do Brasil, sendo-lhes superiores em população a cidade do Rio, com 1.170.000 habitantes, a capital de São Paulo, com 600.000  e a cidade de Salvador, com 290.000. O Recife era um aglomerado urbano muito civilizado, a que servia um porto quase concluído, por onde se exportavam grandemente o açucar e o algodão e se recebiam  produtos manufaturados quer do sul do país, quer da França, da Inglaterra e dos Estados Unidos.

Para falar do Recife de há 50 anos e dos jornais que, então, aqui circulavam. Preferi escutar a conversa de um miudeiro do Córrego de São Sebastião, em Água Fria, chamado Manuel Caetano da Paz, que durante 16 anos foi o gazeteiro Mané Beiçola e começou vendendo o Diário de Pernambuco por 200 réis, que ele ainda hoje chama "dois tões". Tal quantia corresponde, agora, à quinquagésima parte de um centavo do cruzeiro novo, mas foi o preço do matutino do Recife na década de 20 e nos começos da de 30.

MENINO DE SUBÚRBIO

Manuel Caetano da Paz é um mulato alegre e feliz, dotado de boa memória e de grande capacidade de relacionamento. Nasceu no Alto José do Pinho, a 13 de maio de 1911, teve 19 irmãos, tem 8 filhos e uma multidão de amigos. É um fiel devoto de Nossa Senhora da Conceição. Lá no Córrego de São Sebastião, onde fica a sua barraca de miúdos, todo mundo o conhece pelo antigo nome dos seus tempos de gazeteiro: Mané Beiçola. Também no Alto do Pascoal onde ele reside, só o chamam por este apelido e ninguém sabe quem ali Manuel Caetano da Paz.

Ficando órfão de pai, o menino Manuel começou a fazer fretes na feira da Encruzilhada, por volta de 1921. Ele garante que que por ali ainda passava a maxambomba com destino a Beberibe ou a Campo Grande. Realmente o pequeno trem da Companhia de Trilhos Urbano do Recife a Olinda continuou trafegando mesmo depois da inauguração, em 1914, das primeiras  linhas de bondes elétricos. Somente a 30 de julho de 1922 foi que os bondes da Pernambuco Tramways correram até Beberibe, aposentando a maxambomba que para ali trafegara durante 51 anos.

Mané Beiçola, o gazeteiro (1928)
O GAZETEIRO

Em seu trabalho precoce, no Largo da Encruzilhada, o mulatinho Manuel Caetano fez amizade com com o gazateiro Pilotinho, que chamou para ajudá-lo na venda dos jornais. O menino adorou a nova profissão e logo rendeu o apelido de Beiçola. Ele ainda se lembra de muitos apelidos dos jovens ou velhos gazeteiros dessa época: João Molequinho, Caloura, Ronhento, Massambira, Laquarita, Catorze, João Rouco, Pitota, Zé Pequeno, Costela, Mané-Mané, Amarelinho, Cebola, Budé, Centenário, Chapa Quatro, Bebé, Setenta e Sete e vários outros. Como se recorda Beiçola, pouco eram os gazeteiros, geralmente os mais velhos, que não tinham apelidos.

Começou assim a profissão de gazeteiro, com onze anos de idade e, pouco depois, passou de ajudante a gazeteiro autônimo com a fiança dada por um certo Bibitinha, empregado do agente distribuidor conhecido como Pedro-meu-filho. Crescendo e fortalecendo-se, Beiçola passou a carregar, ainda na década de 20, 700 jornais, assim distribuídos: 150 Diários de Pernambuco, 100 Jornais do Commercio, 100 Jornais do Recife, 250 Diários da Manhã, 25 Diários do Estado, 25 Províncias e 50 Estados. Isto era possível porque os matutinos circulavam com 6 ou 8 páginas diárias. Os vespertinos eram geralmente menores e Beiçola se lembra dos seguintes: Jornal do Recife, Jornal Pequeno, A Rua, A Notícia, A Noite, A Lanceta, Correio da Tarde, Correio Jornal e Diário da Tarde.

Aos 17 anos de idade, Beiçola posou para o fotógrafo amador Francisco Rebêlo e essa foto de 1928 ilustra a presente pesquisa. Manuel Beiçola, agora sexagenário, costuma dizer que viu na rua o Recife crescer, em apenas 16 anos (1922-1938). E é uma grande verdade, pois entre os começos  da década de 20 e os fins da de 30, esta capital aumentou em 50%, tanto em gente de toda espécie com em habitações de todas as categorias. Foi em 1938 que Beiçola deixou de andar nas ruas como gazeteiro, para trabalhar em transportes terrestres, filiando-se ao Sindicato dos Arrumadores, onde se registrou sob o número 740.

AUTORIDADES E DESORDEIROS

Na sua memória  muito pronta e sempre fiel, Manuel Caetano da Paz guarda os nomes dos Governadores do Estado de Pernambuco, nos seus tempos de menino e de rapaz: Dantas Barreto, Manuel Borba, José Bezerra, Sérgio Loreto, Estácio Coimbra, Carlos de Lima e Agamenon Magalhães. Ele fala no Diário da Manhã e Diário da Tarde, de Carlos de Lima Cavalcanti, e na Folha da Manhã, de Agamenon Magalhães. Tem muita gratidão a Carlos de Lima, porque na única vez que foi preso pela polícia, por desordens de outros gazeteiros, o Dr. Carlos mandou-o libertar das grades da  Delegacia do 1º Distrito, então no Pátio do Carmo. Mas também gostava de entregar jornais na casa de Dr. Agamenon, alí na Capunga, sua última zona de trabalho como gazeteiro. Das outras autoridades desse tempo , foi o Dr. Rodolfo Aureliano que mais ficou em sua Lembrança. Em suas próprias palavras: "Quem fez gazeteiro gente foi Dr. Rodolfo".

Andando dia e noite nas ruas da cidade, dos 11 aos 27 anos, Mané Beiçola teria mesmo de conhecer  os valentões que proliferaram no Recife, até 1930. Lembra-se muito bem das valentias de Delfino da Bomba do Hemetério, Cícero da Gameleira, Miguel Celestino, Gato Preto, Corre-Hoje, Zé Molequinho, Valdevino dos Coelhos, Nascimento Grande, Adelino, Padeiro, Paulino, Joaquim Grande, Amaro do Abacaxi, Fon-Fon, Natanael, Pião, Dolero, Dieca, Calouro e Firmino. Havia mesmo um valentão chamado Jesus, o que Mané Beiçola, como católico e devoto de Nossa Senhora não podia entender. Foi no Largo da Encruzilhada, ainda no tempo da maxambomba, que o menino Beiçola viu e temeu o desordeiro Nascimento Grande, cuja fama se espalhava por todo o Recife de há meio século.

UM RECIFE REVOLTOSO

A linguagem popular  de Manuel Caetano da Paz traduz as condições políticas e sociais desta capital, nos começos da década  de 20, com estas palavras: "O Recife era muito revoltoso". De fato, nos meados dos anos de 1922, sucederam-se tumultos e conflitos nesta cidade, com o esfacelamento do acordo partidário "Paz e Concórdia", que um dissidente gaiato chamava "paz com corda". A situação de intranquilidade e insegurança chegou a tal  ponto que o comércio e os educandários fecharam as suas portas, enquanto se concentravam no Recife tanto os batalhões do exército sediados em Alagoas e na Paraíba, com grupos de cangaceiros descidos do sertão.

Largo da Encruzilhada, a estação de trem e a feira onde Mané Beiçola começou a trabalhar. Foto: Instituto Moreira Sales. (clique na foto para ampliá-la).

Nos últimos dias de maio, houve tamanha confusão nesta capital, com disparos de tiros e detonações de dinamites, que o próprio Diário de Pernambuco deixou de circular no dia 30 e a edição de 31 limitou-se a quatro páginas. Mas a 1º de junho retomou sua feição comum de seis páginas.
Nas eleições para governador do Estado, realizadas em 27 de maio, tinham sido sufragados os nomes de José Henrique e Lima Castro. Cada facção jurava que ganhara  as eleições, pelo que o Arcebispado de Olinda e Recife, através do Deão Pereira Alves, seu Vigário Capitular, cuidou da pacificação de Pernambuco, o que conseguiu, finalmente com a renúncia do Governador  José Henrique, reconhecido pelo Congresso Estadual, e a escolha do Juiz Federal Sérgio Loreto, com candidato de conciliação. Eleito e reconhecido, Sérgio Loreto tomou posse a 18 de outubro de 1922 e logo no dia 21 iniciou a correção da desordem administrativa, reinante em todo território pernambucano.      

Por: Jânio Odon/ Blog Vozes da Zona Norte. Extraído do texto do pesquisador Tadeu Rocha, publicado no Diário de Pernambuco/1972. 

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