sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

A viagem de trem e a festa de São Severino do Ramo de 1889

 
A grande dificuldade dos fiéis chegarem a Festa de São Severino dos Ramos, em Paudalho-PE e a penosa estadia num local desestruturado no Engenho Ramos em 1889.

A tradição da romaria de São Severino dos Ramos, chamada também de “São Severino” ou São Severino do Ramo”, no município do Paudalho, na Zona da Mata Norte de Pernambuco, começou na segunda metade do século XIX, quando segundo relatos, um dos filhos da proprietária do Engenho Ramos, trouxe uma estátua do santo católico, de Roma, que lá é conhecido por São Severinus de Norticum. Foi no século XIX, que se tem conhecimento das primeiras notícias de milagres atribuídas ao santo, e que hoje é referenciado na Capela de Nossa Senhora da Luz, neste município. Conta-se que as vestes do santo era azul, mas a devoção ferrenha dos primeiros romeiros que queriam tocá-lo, acabaram por rasgar suas vestes. As novas vestes, foram confeccionadas na cor vermelha, predominante no fardamento dos soldados romanos.

O certo é que a romaria de São Severino cresce a cada ano. Considerada como sendo a maior romaria do Estado e a terceira do país. Prova dessa devoção, está registrada no extinto jornal recifense, Jornal do Povo, onde o vespertino relata todas as dificuldades encontradas pelos fiéis  para chegarem até a Estação de São Severino, vindo de trem do Recife, e a falta de estrutura encontrada no local do evento, há 132 anos atrás. Veja na íntegra, todo relato desta histórica aventura.

Jornal do Povo, 22 de janeiro de 1889, terça-feira.

A FESTA DE SÃO SEVERINO

Ao partimos anteontem pelas 8 horas da manhã da Estação do Brum com destino ao Engenho do Ramos, auguramos mal de semelhante passeio pelo modo porque havia começado. O adágio: - a mau começo bom fim – mais uma vez deixou de realizar-se. Ou por falta de material rodante ou por mal direção, ou porque a venda de bilhetes naquela estação houvesse sido duas ou três vezes superior a lotação dos carros, certo é não só que grande quantidade de passageiros foi obrigada a fazer a viagem de pé, e o número destes era maior do que os que iam assentados, como também não pequeno número de passageiros, por falta de lugares, teve que ficar na “gare”(= prejuízo) e de ver, embora com seu bilhetes nas mãos, partir o trem a lhes dizer um adeus de escárnio!...

Que se deem estas aglomerações nos bondes e trens urbanos, nos dias de corridas nos hipódromos ou nos de  festa do Poço e de Caxangá, mas em uma estrada de ferro, e subvencionada pelo governo. É inadmissível.

Além da longitude da viagem, duas horas e tanto, do que resultou grave incômodo para todos os passageiros, há de entender  que os carros, desde a caixa até as molas e as rodas são construídos para suportarem  certo e determinado peso, e não mais do duplo como anteontem aconteceu, podendo daí provir ou dano para a linha, ou, o que seria pior, que se quebrasse alguma mola, dando em resultado o desmantelamento do comboio e, provavelmente, até as perdas de vidas.

O que, porém, tornou-se mais escandaloso ainda, foi o procedimento dos que dirigiram  esse serviço, ao chegar o trem na Estação da Encruzilhada; na do Brum, deixaram ficar, como dissemos, muitos passageiros, por isso que havia não mais lugar para acomodá-lo; conseguintemente, o trem ou deveria seguir expresso, ou nunca tomar, como fez, todos os passageiros em número de trinta ou quarenta que ali na Encruzilhada se achavam, e mais alguns dos que esperavam no Arraial (estação que ficava próximo ao atual Largo Dom Luiz).

Sobremodo incômodo seguiu daí a viagem até seu ponto terminal, acrescendo que os passageiros que ficaram, isto é, que deixaram de ser aceitos no Arraial, vingaram-se atirando pedras contra o trem, que bateram em alguns passageiros, e dando diversas pauladas que se empregaram em outros e até no braço de uma senhora.

Terminou-se, enfim, essa viagem massantíssima, prenuncio necessário lógico, fatal de graves incômodos e pungente tédio. Admira, pasma saber-se que tanta gente se abale daqui do Recife para ir ao Engenho do Ramos, assistir a Festa de São Severino. Igreja pequena, mal podendo acomodar umas duzentas pessoas, para perto de duas mil deixam forçosamente de assistir a esta festa, para ou ficarem a passear por sobre um terreno baixo ou desigual e descampado, e, por tanto, ao rigor do sol, e sol ardentíssimo, ou ficarem sentados dentro das palhoças, chamadas de hotéis, a comer, a beber, se porventura não julgassem mais acertado ficar por ali assentados, meditando o triste fado que a tão aborrecido passeio os conduzira.

Como pois tanta gente se abala par ir a esse passeio? Nada, absolutamente nada ali se vê que valha a pena, nem o sacrifício de um minuto, quanto mais de um dia inteiro. O engenho é uma pobre e mal tratada engenhoca; o lugar é quente e sem menor atrativo e aonde existem construídas apenas a igreja, a casa do proprietário e a do engenho; o terreno é desigual, formado de massapê e de areia à qual reflete o ardente calor de um sol abrasador; passeios não há nenhuns; lugares próximos e bonitos que convidassem a ser visitados também não o há, e como já demos a entender passa-se ali o dia ou exposto a esse rigor de um sol de verão, ou a caminhar-se de palhoça para palhoça a ver-se sempre as mesmas pessoas  e as mesmas mesas de comidas e de jogo.

Bancas de lasquinê (tipo de dominó baiano) nas palhoças, isto é, nos hotéis; prados em números de loterias relativas ao naipes das cartas no pequeno largo em frente à igreja, eis os divertimentos da grande festa que serve apenas  de proveito aos festeiros que são os que armam os hotéis e que tanto maior lucro tirarão, quanto maior for o número de incautos que para ali se dirija.

E, dali os anúncios pomposos, os reclames repetidos e as vivas descrições dos inúmeros milagres do Senhor São Severino. E não há aqui no Recife tanto santo milagroso. E, porque São Severino não fez ali o milagre de conseguir a prosperidade de tal engenhoca e a completa felicidade do respectivo dono desta? Felizmente só de ano em ano se produz semelhante festa, ou de tão tremendo e pesado cacete. Finalizou.   

Por: Jânio Odon/Blog Vozes da Zona Norte. (DIREITOS RESERVADOS)

Fonte: Jornal do Povo/Recife. Biblioteca Nacional (RJ). (bndigital.bn.gov.br)

GALERIA

A antiga Estação de São Severino, Paudalho/PE.

Casarão em ruínas do Engenho Ramos.



 

 

 

 


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