sábado, 31 de março de 2012

A expulsão do padre Vito Miracapillo do Brasil

O padre Vito Miracapillo deixa a Matriz de Ribeirão, com destino à Brasília sobre forte comoção dos fiéis. Foto: Diário de Pernambuco.


Ribeirão, 1980- A pequena cidadezinha da mata-sul pernambucana, distante 82 Km do Recife, tinha como pároco, o padre italiano, Vito Miracapillo, que havia chegado de sua cidade natal, Andria, em 1975. Padre Vito, filho de uma família de padeiros, era um fiel seguidor dos ensinamentos do Vaticano II, concílio que provocou  uma reviravolta na igreja católica e ajudou a sedimentar o pensamento da ala progressista, que tinha dom Helder Câmara como um dos expoentes. Na América Latina, os bispos fizeram a “opção preferencial pelos pobres”. As provas do comprometimento do sacerdote com essa proposta estavam explícitas na forma em que ele organizava a comunidade e nos seus escritos: “ A miséria  e a desolação de quase a totalidade da população estão em escandaloso contraste com a fertilidade da terra”, avaliou logo ao chegar em Ribeirão, quando se encantou com a natureza, a alegria e a hospitalidade das pessoas. Chegou à cidade em plena ditadura militar, onde a censura prevalecia, faltava pão para o povo, a pobreza era absoluta. Padre Vito, estava convicto que era preciso fazer algo em defesa daquele povo sofrido. Então, criou a Pastoral voltada para o povo, comunidades de bairros de periferia da cidade e do campo.

Com a pastoral, padre Vito Miracapillo contraiu para si, vários desafetos, poderosos da região, como políticos e senhores de engenho. A pastoral mobilizava os agricultores, por melhores condições de trabalho e lutava pela reforma agrária e desapropriação das terras não produtivas.

Todavia,  o padre Vito Miracapillo tornou-se o inimigo numero um dos poderosos da região da mata-sul, em 1977, quando decidiu apoiar os trabalhadores da Usina Caxangá. As terras da usina tinham sido distribuídas pela União como pagamento pelos débitos trabalhistas, mas foram sendo renunciadas pelos trabalhadores à medida que a Cooperativa Integrada de Reforma Agrária (CIRA), responsável pela administração da área, dificultava o transporte da cana e aumentava as taxas cobradas sobre a produção.

O estopim estava armado. A iniciativa de organizar os trabalhadores, inquietou a direção da CIRA, que desconfiava das orientações do padre aos camponeses e o fato de Vito Miracapillo acompanhá-los na busca de apoio para reaver suas terras. O padre começou a ser observado mais de perto e os camponeses pessoalmente por pistoleiros. A Escola do Engenho Progresso foi fechada pelo prefeito para que o padre Vito não realizasse, no interior da Escola, missas e principalmente reuniões.

Em meio a acusações mútuas, o INCRA resolveu averiguar as denúncias de irregularidades. Constatou-se que 350 famílias com direito à terra moravam na área  da usina , mas haviam ganho a posse  e que “boa parte dela se encontrava nas mãos de pessoas que não estavam diretamente ligados ao Projeto Caxangá, como vereadores, dentistas, proprietários de terra, funcionários do governo, comerciantes”. O mais grave: encontrou-se parcelas com até 160 hectares, quando o projeto previa no máximo 30 hectares.

A balança, no final de agosto, parecia pender para os trabalhadores e os donos dos canaviais preocupavam-se com os boatos de uma greve geral.

Nesse cenário, o padre Vito, recebeu um ofício da Prefeitura de Ribeirão, solicitando a realização de duas missas, uma no dia 7, e outra, no dia 11 de setembro, em homenagem a semana da independência do Brasil. O padre Vito Miracapillo chegara a conclusão, que era o momento de expressar sua insatisfação de forma impactante, registrando por escrito, as razões da recusa em rezar as missas em um ofício destinado ao prefeito Salomão Correia Brasil “Ao prezado prefeito... À distinta Câmara Municipal. Tendo recebido ao convite para as solenidades da semana da pátria, faço ciente aos Exmos. Srs. de que não será celebrada a missa de ação de graças no dia 7 e no dia 11, na forma e no horário anunciados. Isto por vários motivos, entre os quais a não efetiva independência do povo, reduzido à condição de pedinte e desamparado em seu direito.”
Severino Cavalcanti, o delator. foto: Silvio Ferreira/Veja.

A recusa do padre Vito, foi o estopim para a crise entre o governo e a igreja católica, foi também, o momento certo para os desafetos do padre aproveitarem da situação e descartar de vez, o religioso da região. O deputado estadual pelo PDS, Severino Cavalcanti (aquele do escândalo do mensalinho, de 2005) foi o porta voz. O deputado encaminhou para a mesa diretora da Assembléia Legislativa de Pernambuco, um apelo ao ministro da justiça, Ibraim Abi- Ackel, pela expulsão do padre Vito Miracapillo.

Severino Cavalcanti na ocasião, comentou: “O padre Vito, tem se distinguindo pela sua ação subversiva na região da mata sul, e agora, para coroar a sua posição e dar uma satisfação a Gregório Bezerra e a Moscou (comunistas), deixar de celebrar, cumprir seu dever de sacerdote, recusando-se a prestar assistência espiritual aos seus paroquianos”. Adiantou ainda: “O pedido ao ministro da justiça é no sentido de ser apurada a atitude antipatriótica do padre católico, enquadrando-o nos artigos do Estatuto dos Estrangeiros, a cuja transgressão se pune com a expulsão do país, punindo assim a este mau sacerdote que está desservindo à igreja, à família e ao Estado, ensejando a perturbação da ordem pública em Ribeirão”. 

Depois que a noticia correu por Ribeirão que o padre Vito Miracapillo seria expulso do país, dezenas de fiéis invadiram a Matriz de Santa’ana para rezar pelo pároco, sobre forte emoção e muito choro.   

O caso do padre Vito Miracapillo, ganhou repercussão em todo o país e no exterior e causou grande desconforto entre a igreja católica e o governo militar. A avalanche chegou ao Palácio do Planalto no começo de setembro, impulsionada por um jornal em que o Presidente da República, João Batista Figueiredo leu o desafiador ofício do padre Vito. A 7 de setembro, no palanque armado no eixo monumental  de Brasília. Figueiredo queixou-se do padre a dom Carmine Rocco (núncio apostólico) e informou que ao governo não restava alternativa além do decreto de expulsão. A menos, ressaltou o presidente, que a remoção do padre fosse discretamente antecipada pelo Vaticano. Situação esta, que não veio a acontecer.

Os advogados do padre Vito Miracapillo, entre eles, Pedro Eurico, que posteriormente tornaria deputado, entraram  com um pedido de habeas-corpus no STF, pela suspensão da expulsão. O pedido foi concedido pelo ministro do Supremo, Djaci Falcão.

Durante todo o processo de expulsão, o padre Vito Miracapillo ficou confinado na CNBB, em Brasília. Defendeu-se explicando que não se recusou a rezar a missa - recusou-se, apenas, a celebrá-la no dia e na hora marcada pelo prefeito de Ribeirão. O padre Vito, não imaginava que poderia ser expulso do país pela sua atitude. A verdade é que o fato, gerou uma crise e que mais uma vez colocou em trincheiras opostas representantes do clero e do regime militar.

 A crise ficou evidenciada, durante a permanecia de bispos e cardeais brasileiros em Roma. Dom Ivo Lorscheiter, dom Aloísio Lorscheider, dom Eugênio Sales, dom Cláudio Hummes e dom Luciano Mendes de Almeida, patrocinaram uma silenciosa censura ao gesto do governo brasileiro. Convidados para um almoço na embaixada do Brasil, os bispos não compareceram.
2 de outubro de 1980, grupo de fornecedores de cana e senhores de engenho invadem a Matriz de Ribeirão para impedir a celebração da missa em solidariedade ao padre Vito Miracapillo. Foto: Natanael Guedes/AJB.

Enquanto isso, em Ribeirão, no dia 2 de outubro, 52 padres se reuniram junto a dezenas de fiéis para celebração de uma missa pela permanência do padre Vito Miracapillo. O que ninguém esperava é que a matriz de Nossa Senhora de Santa’ana seria invadida por um grupo de fornecedores de cana e senhores de engenho. A repórter da sucursal do jornal do Brasil no Recife, Divane Carvalho que cobriu o episódio descreve: ...armados, transtornados, eles entraram na igreja para impedir a celebração tendo como estandarte uma imensa bandeira do Brasil e nas mãos cópias da letra do Hino Nacional que cantavam lendo, porque não sabiam de cor todas estrofes. Uma exarcebada e equivocada demonstração de nacionalismo em plena agonia da ditadura.
    Com o mastro eles encurralaram os celebrantes no altar, assustaram os fiéis e tentaram impedir o trabalho dos jornalistas. Adultos e crianças gritavam, pulavam as janelas, um terror. Um dos manifestantes tentou tomar a máquina do fotógrafo Solano José, da “Isto É”,que escapou ajudado pelos colegas. Depois, partiram para tirar as anotações de Luzanira Rêgo, do jornal “O Globo”. A truculência cresceu e não havia saída: ela e eu subimos no altar lateral da igreja segurando uma cadeira e ameaçamos quebrá-la na cabeça do primeiro que se aproximasse. Não foi preciso. O delegado da cidade chegou em tempo, expulsou os agressores e a missa começou.
Corri para rua em busca de um telefone, coisa difícil naquela época, mas um comerciante indignado me ajudou e eu passei a notícia para Rádio Jornal do Brasil, a recompensa depois de tanta tensão: o material seria manchete da primeira página, daríamos as fotos e havia espaço para contar tudo o que aconteceu. Foi o que fiz.

Em 31 de outubro, o padre Vito Miracapillo deixou o Brasil, após o Supremo Tribunal Federal, por onze votos a zero, considerar perfeitamente legal, o decreto de expulsão assinado quinze dias antes, pelo Presidente João Batista Figueiredo.

Com dois cestos de bananas para dar de presente a seu avô e enfiado num sobretudo mais adequado ao o outono italiano, o padre Vito de 33 anos, deixou Brasília no fim da tarde da sexta-feira e voou para o Rio de Janeiro, escoltado pelo tenente-coronel Piero Ludovico Gobbato. No Galeão ficou trancado numa sala da Polícia Federal, o padre conversou durante meia hora com o cardeal  Eugênio Sales, três bispos e dois parlamentares do PMDB carioca. Às 22h20, já sem o sorriso que sustentara durante quase uma semana, o padre Vito Miracapillo embarcou no DC-10 da Varig, no vôo 734, para uma viagem de treze horas até Roma.

Enquanto isso, no Recife, sem atender a conselhos de dom Helder Câmara, o padre Reginaldo, vigário do Morro da Conceição, no bairro de Casa Amarela, distribuiu cópias à imprensa de um hino que compôs com oito estrofes onde classifica a decisão do STF de “coito verbal”, gerando um novo conflito entre a igreja e o governo militar. 
 Vito Miracapillo celebra missa em Ribeirão, em 1993. Foto: Jornal do Commercio/Recife.

A VOLTA- Em 1993, o Presidente do Brasil, Itamar Franco, concedeu ao padre Vito Miracapillo visto de permanência como turista. Mas só em outubro de 2011, a Presidente Dilma Rousseff concedeu seu visto permanente.        


Por: Jânio Odon de Alencar.
Fonte: Diário de Pernambuco, Jornal do Commercio e Revista Veja.
Agradecimentos: Historiador Julio Reinaux e os jornalistas Jailson da Paz e Divane Carvalho.






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