quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Bento Milagroso, o curandeiro de Beberibe

Bento Milagroso, o curandeiro que causou medo, pavor, revolta e conquistou simpatizantes no povoado de Beberibe. Foto: Jornal Pequeno (Recife) de 11/11/1912.


Bem perto de Beberibe, no bairro de Dois Unidos, fica a empresa Águas Minerais Santa Clara S/A, lá existem em plena Reserva Ecológica da Mata de Dois Unidos, duas nascentes e três poços profundos onde são captadas toda água mineral produzida pela empresa. As nascentes são conhecidas por Padre Lâmego e Santa Clara, já os poços foram batizados de: Frei Damião, Seu Zeca e Bento Milagroso. Este último, foi um personagem verdadeiro, que provocou o maior rebuliço no povoado de Beberibe, em 1912, por se intitular curandeiro e por descobrir a fonte de água milagrosa no rio Beberibe, capaz de curar qualquer tipo de doenças e mazelas. Bento, o milagroso, atraiu milhares de pessoas enfermas a este povoado, uma verdadeira romaria, causando preocupação as autoridades sanitárias e policiais, manifestações de protesto por parte da imprensa pernambucana, temor e pânico  para população local.

Bento José da Veiga, conhecido como “Bento Milagroso”, nasceu no povoado de Goiana (PE) em 1870. Veio morar em um casebre na estrada de Caixa D’Água, distrito de Beberibe, em 1890. Era analfabeto, e disse ter passado sete anos na Amazonas e ter adquirido com os índios o dom da cura através dos espíritos dos caboclos indígenas que ele o encarnava, além do conhecimento medicinal e a descoberta da fonte da água milagrosa no rio Beberibe. Bento declarou ser adepto do espiritismo e simpatizante de Allan Kardec. Ele disse que durante oito dias, sustentaram-no os espíritos. Aí derramaram-se os treze raios do sol e as doze estrelas coroadas sobre a sua cabeça, e foi quando ele ficou santificado e puro, para que pela sua boca falassem os espíritos, dando-lhes as revelações da sua vontade e dos seus desígnios.

Bento Milagroso, concedeu entrevista ao jornal recifense “Jornal Pequeno” em 11 de novembro de 1912. Os boatos sobre o curandeiro de Beberibe se espalhou por toda a cidade, as lotações dos trens, conhecidas por maxambombas, chegavam lotadas por pessoas doentes de todos os lugares. A população de Beberibe começou a temer a manifestação de uma epidemia, já que vários doentes eram portadores de doenças contagiosas, o que causou grande preocupação ao Departamento de Higiene do Recife. Foi feito um manifesto através de ofício pelo inspetor geral de higiene do Estado, Dr. Gouveia de Barros, destinado ao chefe de polícia, Dr. Francisco Porfírio, sobre o curandeiro de Beberibe, datado do dia 11 de novembro de 1912 e publicado pelo Jornal Pequeno, da seguinte forma: Ilmo. Sr. Dr. Francisco Porfírio, chefe de polícia. Sendo procedentes as notícias dadas pelos jornais desta cidade, relativamente a um maníaco ou explorador existente em Beberibe, de nome Bento de tal e que se diz milagroso e curando todas moléstias, e determinando este fato grande afluência aquele povoado de doentes, muitos dos quais, de moléstias contagiosas, que constituem sério perigo a saúde pública  e individual. Solicito-vos, urgentes, enérgicas e decisivas medidas no sentido de ser cessada semelhante exploração que além dos inconvincentes atos demonstrados...(Trecho ilegível)...atentado direto ao art. 156 e inciso 3º do nosso código penal. Saúde e Fraternidade. Assinado Dr. Manoel Gouveia de Barros, inspetor geral de higiene.

Jornal Pequeno de 9/11/1912..
No dia 12 de novembro de 1912, numa terça-feira, pelas 16 horas, se apresentava na Chefatura de Polícia, Bento Milagroso. Segundo o Jornal do Recife do dia 13 de novembro, o Dr. Francisco Porfírio teria declarado o seguinte: Que não pretendia estabelecer uma reação, mas deseja simplesmente conciliar os ânimos, afim de evitar certas e determinadas inconveniências para a população desta cidade.

O transporte de passageiros atacados de moléstias infecto contagiosas, feito nos trens de Beberibe, inflige as disposições regulamentares da Inspetoria de Higiene Pública. Assim devem ser evitados quanto antes, não somente o aludido transporte com também o ajuntamento de leprosos que diariamente se verifica na residência do citado Bento Milagroso.
O Dr. Francisco Porfírio terminou recomendando ao mesmo que se retirasse desta cidade, evitando assim, que sejam infligidas as disposições legais. Bento Milagroso prometeu cumprir fielmente ás ordens daquela autoridade. O jornal enfatizou: Como se vê, o Dr. Francisco Porfírio, cumprindo rigorosamente seu dever, foi de uma prudência altamente louvável.

O Jornal do Recife do dia 14 de novembro de 1912, elogiou a polícia e criticou as práticas milagrosas de Bento Milagroso da seguinte forma:  “Bem procedeu  a polícia no caso de Beberibe. Não se pode negar que andou criteriosamente, pode a solução dada aquele caso, não ter agradado á certa gente. Nem por isso ela deixa de ser perfeita e bem ponderada. Não era possível continuar a permitir  aquela romaria  ao pitoresco arrabalde. O tal Bento Milagroso, um intrujão como outros muitos, já estava quase canonizado. Não era diminuto o número de pessoas , que iam procurar, visando alivio para as moléstias, que as perseguiam.

E o homem, com a água do rio, ia arranjando a vida da melhor maneira. Enquanto as curas se multiplicavam, as moedas iam caindo numa caixa, que na palhoça fora colocada. O Bento não recebia dinheiro, mas a caixa ficava cheia todos os dias. O negocinho ia rendendo, tanto mais quanto ao lado da palhoça, numa outra, o pai do Bento vendia caldo de cana.
E a onda dos doentes aumentava todos os dias. Eram cegos, leprosos, aleijados, em suma enfermos de inúmeras moléstias, que se acotovelavam numa promiscuidade revoltante em volta da casa do milagroso homem.

A uma, a tal romaria prejudicava grandemente a saúde pública e a outra, num momento, poderia trazer a perturbação da ordem. Demais a história de todos os fanáticos começa como a do Bento Milagroso. Ora, em tais condições, a resolução do Dr. Francisco Porfírio só merece aplausos. A missão da polícia é, principalmente, preventiva. O alvitre, tomado pelo chefe da segurança pública, evitou coisas muito desagradáveis.

Além disto que se passava em Beberibe dava, da nossa cultura, uma ideia desgraçada. Aquilo mostrava até que ponto o cretinismo se intensifica no Recife. O modo de proceder do Dr. Francisco Porfírio não agradou a um burguês letrado e espiritista. Não sabemos bem se o homem de ventre adiposo e de língua solta estava zangado por causa do Bento, ou porque o chefe de polícia mandou o santo acabar com a intrujice impedindo assim a exibição dos espíritos naquele recanto de Beberibe. O certo é que protestava. Era um gosto vê-lo discretear sobre a teorias de Allan Kardec.
Contava casos admiráveis de cura pelo espiritismo. O seu médico preferido era o finado Dr. Dornellas. Não precisa mais para que se possa aferir da importância do censor. Ouvindo-o lembrei-me de uma receita do finado esculápio, passada por interferência de um médium. Era destinada a combater um ataque de erisipela e o modo de aplicar rezava assim: afomente a parte enferma. Só isto documenta a sem razão do espalhafatoso crítico.
Felizmente o milagreiro não pode continuar a explorar os papalvos. Razão para queixas só tem a ferrovia de Olinda. Perdeu uma bela fonte de receita”.

Tudo parecia voltar à normalidade em Beberibe, pois, Bento sumiu de Beberibe com destino ignorado. Dias depois, ele voltou ao povoado com as mesmas práticas. No dia 27 de novembro de 1912, na Estação de trem da Encruzilhada, quando Bento se dirigia para o Recife, foi detido e preso pela polícia. O Jornal do Recife do dia posterior noticiou o fato da seguinte forma: “Desde anteontem, que o Dr. Francisco Porfírio, chefe de polícia, havia ordenado que fosse efetuada a prisão de Bento José da Veiga, o popular geralmente conhecido por Bento Milagroso.
Ontem, às 09:25 minutos da manhã, quando o aludido popular se dirigia para o Recife, em um auto da garagem Conceição, foi preso na Estação da Encruzilhada, pelo agente de polícia Francisco Bezerra, saindo dali para a Casa de Detenção (atual Casa da Cultura) onde ficou recolhido na cela Nº 2 do raio norte, incomunicável e a disposição da polícia.
A prisão de Bento Milagroso teve por fim pôr-se um paradeiro ao que se estava passando em Beberibe. Efetivamente merecia um corretivo o que ocorria, dado o grosso ajuntamento, nos trens e naquele subúrbio, de pessoas, inclusive doentes, muitos de moléstias contagiosas. Era preciso acabar-se semelhante inconveniência que poderia trazer funestos resultados para a população desta cidade.
- Soubemos, á noite, ser advogado de Bento Milagroso, o Dr. Trindade Henrique, que esteve com o Dr. Francisco Porfírio, chefe de polícia”.

Enquanto isso, o povo protestava:

"Essa medida, em geral,
 Classificam malvadeza;
 Pois a quem Bento fez mal?
 Matara alguém com certeza?
 Não senhor! Diz-se em surdina,
 Seu crime é este: Que ideia!
- Prejudica a medicina
- Atrasa a farmacopeia".

Como se vê nos artigos de jornais da época, combatiam veemente as práticas milagrosas de Bento, todavia, ele sempre conseguia se livrar destas avalanches de críticas e até mesmo da prisão e tornava-se uma grande dor de cabeça para as autoridades do governo, já que uma multidão saia em grandes passeatas em defesa do curandeiro e obrigava a justiça a tomar um posicionamento cauteloso para que não acontecesse uma revolta popular e ocasionasse grandes prejuízos ao patrimônio público e privado, tanto era verdade que no dia seguinte, Bento Milagroso foi posto em liberdade.
O jornal do Recife do dia 29 de novembro de 1912, publicou: “O Dr. Chefe de Polícia mandou ontem às duas horas da tarde, pôr em liberdade o curandeiro Bento José da Veiga, que fora preso na véspera  e recolhido à Casa de Detenção. Solto Bento, logo se cercaram dele muitos populares, sendo depois grande o ajuntamento que o acompanhou até Beberibe”.

O povo dizia:
"À margem do Beberibe
 Bento, o novo Conselheiro
 Os seus milagres exibe
 Assombrando o mundo inteiro"

A figura de Bento Milagroso tornou-se tão conhecida no Recife, que no carnaval de 1913, virou alegoria de carro alegórico. O Desfile da sexta-feira, 31 de janeiro, do chamado “Corso”, desfile de carros alegóricos, pelas principais ruas do Recife, chamou atenção do sétimo carro, na caravana de onze carros, onde trazia uma sátira crítica cheia de deboches sobre o Bento Milagroso e sua quebra de braço com as autoridades sanitárias e policiais do governo de Dantas Barreto.

Bento Milagroso cercado por uma multidão em busca de cura. Foto: Jornal Pequeno/11.11.1912.

No dia 11 de julho de 1916, a polícia foi informada que Bento Milagroso estava de volta ao povoado de Beberibe à fazer suas sessões de curandeirismo. O Jornal do Recife do dia seguinte publicou: “Chegou ao conhecimento do desembargador Antônio Guimarães, chefe de polícia, há dias, que o Bento Milagroso, que já fez o pacato arrabalde de Beberibe se movimentar todo á espera de divinas e milagrosas visões, voltou para ali novamente com as suas bruxarias a iludir os incautos  e fazer milagrosidades esquisitas.

Com efeito, o ridículo autor de tantas pantomimas ali se encontrava, tendo em sua casa um louco de vez em quando solto a dar carreiras horríveis por todo Beberibe, agredindo os pacatos transeuntes que, alarmados, fugiam.
Bento, circunspecto, grave, ereto, pairado na sua ignorância pretenciosa acima de tudo, abria os braços de olhar voltado para o céu e os velhos idiotas e os homens degenerados, cegamente crentes, viam tudo, tudo acreditavam. Ninguém morreria mais; todos doentes ficavam sãos, ao leve sopro da sua não perfumada boca. Os espíritos de caboclos sempre ao seu lado.
Era uma completa barulheira. O chefe de polícia porém, determinou que para ali fosse o Dr. Aristides Scobach, delegado do 3º Distrito, e intimasse o miraculoso Bento a deixar de conversas. Assim foi feito. Na subdelegacia de Beberibe compareceu o cujo, que ouviu uma repreensão pelo seu processo indigno de cavar a vida, ficando ao mesmo tempo ciente que não estamos mais em tempo de catimbau”.

O Jornal A Província que também estava no local acrescentou: “ O delegado Scobach disse a Bento que de ordem do desembargador chefe de polícia, intimava-o a não continuar com as reuniões de “catimbó” que costumava a fazer em sua casa, sob pena de prisão e de processo.
Bento Milagroso, apesar de ser analfabeto e de tanto ser preso e solto, adquiriu conhecimento junto a seus advogados e se fortaleceu de ousadia e replicando as palavras do Dr. Scobach, disse-lhe que a constituição lhe assegurava  o direito de curar, uma vez que não fazia disso meio de exploração. Continuando adiantou que suas curas são importantes e que pode mostra-las a quem quiser. Bem sei que toda esta perseguição que move, é oriunda da classe médica que está sendo prejudicada com os meus trabalhos. Mas, o que hei de fazer? A polícia quer que eu deixe de seguir  a profissão que abracei, portanto, tenho que cumprir as suas ordens”.

Depois desta investida contra o Bento Milagroso, a imprensa passou a acompanhar de longe, dando uma trégua ao curandeiro de Beberibe, mas, a fama de Bento Milagroso atravessou décadas, surgiram livros, perfumes e até supostos discípulos. Como foi o caso de Jaguaribe, em Paulista, em março de 1928, onde vários curandeiros foram presos e uns deles conhecido por João Camboche disse ser o grupo, discípulos de Bento Milagroso. Temendo represálias, logo Bento procurou o delegado distrital para informar que não tem nenhum discípulos sob seu comando.

Membros do Circulo Panteísta da Iputinga colocam um busto de Bento Milagroso em seu túmulo, no Cemitério de Beberibe (atual Cemitério de Águas Compridas).

No dia 3 de junho de 1947, o sr. José Amaro Feliciano, líder da igreja do Círculo Panteísta, religião de origem indiana que venera elementos da natureza, organizou uma grande caravana saindo de sua congregação no bairro da Iputinga até o Pátio do Paraíso (demolido) onde organizaram um grande desfile até a Praça do Diário de Pernambuco para homenagear o Governador Amaro Gomes Pedrosa. Logo em seguida, a caravana seguiu de ônibus até o cemitério de Beberibe (atual cemitério de Águas Compridas) onde foi posto um busto de Bento Milagroso em seu túmulo.

Por: Jânio Odon/Vozes da Zona Norte (DIREITOS RESERVADOS).
Fonte: Jornal do Recife, A Província e Jornal Pequeno. Fundação Biblioteca Nacional (memoria.bn.br)
      
     
 




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