A antropóloga e historiadora norte-americana Katarina Real, uma apaixonada pela cultura popular pernambucana. Foto: Fundaj.Foi durante minhas pesquisas, sem
querer, que descobri a figura desta genial personagem norte-americana,
conhecida em nossa cidade Recife como Katarina Real. Uma mulher apaixonada pela
cultura popular e suas raízes em toda a América. O que me fascinou em Katarina
Real, que era antropóloga, foi sua ousadia e predestinação em busca da essência
e os elementos culturais de cada região e lugarejos remotos, onde poucos
arriscariam transpor.
Aos 24 anos, após se casar aqui
no Recife, com o agrônomo e conterrâneo, Robert Cate, que fazia trabalho de
pesquisa no Brasil, passou a se chamar Katherine Royal Cate, mas que era
conhecida aqui na terra do frevo como Katarina Real. Ela nasceu em 12 de agosto
de 1927, na cidade de Annapolis, em Maryland (EUA).
Esteve na capital pernambucana
pela primeira vez, ainda recém-nascida a bordo do Cruzador Milwalkee da Marinha
Americana, comandado por seu pai, o almirante Forrest Betton Royal, que veio ao
país para instruções navais com a Marinha do Brasil.
Em 1949, formou-se em Artes e Estudos
Luso-Brasileiro pela Stanford University. Neste período, conheceu a obra de
Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, traduzida para o inglês por Samuel
Putman. Katarina Real ficou muito impressionada com o que leu, principalmente
com a influência do negro africano na cultura nordestina.
Aos 27 anos, Katarina Real,
apresentava um programa cultural na rádio da Universidade de Stanford sobre a
cultura Pan-Americana, onde em sua programação, exibia músicas folclóricas e
regionais do Nordeste brasileiro e entrevistas. Numa dessas entrevistas,
conheceu o jornalista pernambucano, Luiz Beltrão, onde construiu grande amizade.
Luiz Beltrão enviou inúmeras correspondências com informações sobre a cultura
pernambucana, gravações de frevo, maracatus e ritmos pernambucanos para serem disseminados
na rádio americana.
Katarina Real esteve em
Pernambuco diversas vezes durante as décadas de 1950 e 1960 e fez várias
visitas entre as décadas de 1980 e 1990. Entre suas idas e vindas ao Brasil, Katarina
Real esteve no Pará, Pernambuco, Rio de Janeiro e Brasília.
Em Pernambuco, Katarina Real,
viajou pelo interior do Estado, visitando povoados e cidades em busca de
elementos culturais existentes em cada localidade como: maracatus rurais,
reisados, caboclinhos, cirandas, papangus, pastoris etc. No Recife, subiu
morros, caminhou por alagados e córregos, conheceu as comunidades carentes, fez
amizades e registrou tudo em seus rascunhos e fotografias coloridas, o
folclore, a tradição, o habitat de cada localidade visitada, algo que poucos
pesquisadores e historiadores pernambucanos ousaram fazer.
Katarina Real, foi brilhante,
ousada, destemida e humana. Uma gringa que amou o nosso carnaval, nossa cidade
e nosso Estado e que merece toda nossa reverência. Conheça um pouco de sua
história e trajetória, além de uma entrevista, numa matéria registrada
magistralmente pelo Diário de Pernambuco em 26 de fevereiro de 1989, concedida
a jornalista Lêda Rivas, e que o Blog Vozes da Zona Norte reproduz para você.
No Caminho da volta (Dizia o
título) – Diferente de uma boa parte de seus compatriotas que tende a
considerar todo o tipo de vida inventiva abaixo do rio Grande como uma imensa
massa uniforme, sem nenhuma identidade cultural, Katharine Royal Knight (nome de solteira) conseguiu, em algumas décadas de vida, trabalho e emoção, detectar algo mais
que exótico, o burlesco e o caricaturável deste lado desta pobre dilacerada América.
Master of Arts e doutora em Antropologia
Cultural e Folclore, esta norte-americana – que, certamente, por equivoco nasceu
nas imediações da baía de Chesapeake, mas bem poderia ter vindo ao mundo às
margens do Capibaribe – tornou-se, em pouco tempo, uma das maiores conhecedoras
dos carnavais do mundo e na mais confiável expert – e a avaliação é feita por
folcloristas ilustres do porte de Olímpio Bonald Neto e Evandro Rabello – do
carnaval pernambucano. A mais característica das nossas festas populares é,
para ela, uma surtíssima atividade intelectual, à qual dedicou anos de estudos
e pesquisas e que veio a consagrá-la como a autora do mais completo livro sobre
o assunto.
Foi exatamente para atualizar
suas investigações antropológicas e preparar uma segunda edição, revista, do
seu “O Folclore no Carnaval do Recife”, o mais importante livro publicado sobre
o tema, como nos adverte Evandro Rabello – que Katharine voltou ao Recife. Os
que dela os recordam – que são muitos, entre expressões de nossa cultura
erudita e representantes do pensamento popular – viram-na misturar-se com a
massa, ao som do frevo e ao ritmo do passo, no início deste mês, inacreditavelmente
multiplicada em várias pessoas, presente ao mesmo tempo, na passarela da Dantas
Barreto, nas ruas de Olinda, na amplidão oceânica de Boa Viagem.
“Eu tinha tanta saudade do Recife...”,
revela, emocionada até às lágrimas, lembrando que é tanto o seu amor pela
cidade que fez grafar o nome do Recife na sua aliança de casamento. Tanto é o
seu amor por tudo o que lembre a ibero e a luso-América, que chegou – no tempo
em que fazia um programa sobre o folclore latino na KGEI, Universidade do Ar na
Califórnia, - aportuguesar seu próprio nome, passando assinar-se Katarina Real.
Ainda não liberta de toda heráldica que a conferência familiar (por parte do
pai, Royal, por parte da mãe, Knight lhe impunha, viria, mais tarde, a
acrescentar o sobrenome do marido, Cate, ao nome.
Esta Katarina Real-Cate que todos
conhecemos tem um forte e longínquo vínculo com as terras brasileiras. Aqui
aportou, nos últimos anos da década de 1930, pelas mãos do pai, um oficial da Marinha
norte-americana transferido para o Rio de Janeiro, vindo do Estado de Maryland,
na costa leste dos Estados Unidos. “Em 1939, sem saber uma palavra em português,
eu cantava marchinhas carnavalescas e sambava, fazia o corso, com confetes e
serpentinas na avenida Rio Branco”, recorda. O samba abria caminho, nas veias
da menina parecida com a atriz Shirley Temple, para que o frevo lhe corresse,
depois, no sangue. Foi o interesse pelas nossas manifestações folclóricas que
fez Katarina retomar, muitas vezes, o caminho da volta.
Mas primeiro aprimorou o
aprendizado da língua e da cultura brasileira, no seu país de origem, estudando
na Universidade de Stanford, onde especializou-se em estudos latino-americano,
com ênfase no Brasil e no mundo luso-brasileiro. Contratada pela Embaixada dos
Estados Unidos no Rio de Janeiro aqui chegou em 1950 para servir de intérprete
e tradutora, atuando imediatamente ligada a um jovem diplomata recém-chegado de
um posto desafiante em Calcutá. Transferida em seguida para Washington, estava,
então, irreversivelmente ligada não só ao país como ao jovem diplomata, um
talentoso especialista em ciências do solo, Robert Cate.
O Recife do final dos anos de 50
foi o cenário do casamento de Robert e Katarina. Desligado de suas funções na
Embaixada, o casal voltou ao Estados Unidos para cursos de pós-graduação na
Universidade da Carolina do Norte, andou – por força de estudos dela e do trabalho de Bob como agrônomo – em várias partes da América (o norte do Brasil
incluído) e, finalmente, por exigência de uma bolsa concedida em 1961, a
Katarina, pela Organização dos Estados Americanos, regressou ao Recife por um
período que se prolongou por oito anos. Começavam aí as pesquisas que dariam
origem ao livro “ O Folclore no Carnaval do Recife”, publicado pelo Ministério
da Educação e Cultura, através da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro.
O tempo em que residiu no Recife
o sr. e a srª Cate transformaram o seu apartamento, no edifício Duarte Coelho
na “Torre do Frevo”, numa clara alusão ao espaço que ali se concedia a todos os amantes da folia. E tanta
importância teve a participação de Katarina nos estudos antropológicos da
Região que, em 1967 – ano da publicação do seu livro – ela foi indicada como
representante do então prefeito Augusto Lucena na Comissão Organizadora do
Carnaval do Recife (1965/1966) e secretária-executiva da Comissão Pernambucana
de Folclore.
A última vez que Katarina esteve
no Recife foi em 1977 (obviamente, no período carnavalesco). Doze anos depois,
retorna (o marido Bob ficou em La Jolla, na costa pacífica, onde o casal mora
“numa casa à beira mar, cercada de pedras, e onde se ouvem fantásticas
tempestades) e onde – e aí alimenta a nossa inveja – “se comem maravilhosos
crabs gigantes”, não só para atualizar seu interessante livro – totalmente
esgotado – como para doar a Fundação Joaquim Nabuco, instituição que lhe serve
de anfitriã, seu fichário e publicações raras alusivas ao carnaval pernambucano.8
Até meados de abril,
possivelmente, Katarina Real estará entre nós. Entre os seus, para usar uma
expressão que lhe agrada. Estudando, fazendo pesquisa de campo, revendo lugares
queridos, falando de carnavais passados e lembrando os amigos, “tantos os que
já estão no céu”, como Dona Santa”, aquela linda rainha do maracatu. E é isto
que encanta nesta gringa recifencizada: o amor sincero e quase obsessivo que
sente pelas manifestações populares e pela imensa massa anônima que faz a nossa
história.
Num bate-papo informal sob a lua
cheia e ao embalo de doces recordações – Katarina fala de seu trabalho, do seu
amor pelo Brasil, do seu interesse pela nossa cultura (“lá em casa temos
estantes para os livros brasileiros e estantes de livros americanos e as
pessoas ficam ali olhando, abismadas, perguntando “você lê português?”) e eu,
feliz, dizendo: “Eu não só leio, como escrevo em português”), do seu carinho
pelos animais ( tem dois cães pomerânios lulus, “Xangô” e “Oxalá”, sucessores
de “Urso Folião” e “Seu Pimenta”, que haviam ocupado o lugar de “Frevo e
“Maracatu”), do seu profundo conhecimento do carnaval do mundo inteiro, em
especial o nosso. São revelações apaixonadas – sensibilíssima – Katarina não
raras vezes chega às lágrimas, principalmente quando fala dos que já se foram
ou quando relembra (off the record) trajetórias distantes, como quando ela e
Bob adentraram o sertão e desembocaram na caatinga, para descobrir milhares de
belos passarinhos de todas as cores.
Vale a pena ouvir Katarina Royal
Cate. Vale a pena aprender com ela.
DP – Katarina, por que o
interesse pelo carnaval pernambucano?
KR – Porque o carnaval
pernambucano é o mais interessante de todo o Brasil, principalmente do ponto de
vista de seus aspectos folclóricos. Eu disse no meu livro que o carnaval do
Recife é o mais folclórico do mundo. Mas eu gosto do carnaval em geral no
Brasil, porque representa a verdadeira alma do brasileiro e considero-me um
pouco brasileira. Gosto de beleza, música, dança, festividade, fantasia. Sou
aliás, uma bailarina frustrada. Então, me dá uma felicidade imensa todo mundo
nessa euforia carnavalesca e, às vezes, danço um pouco, caio no passo, caio no
passo, e até faço o meu sambinha.
DP – Qual a manifestação
carnavalesca mais autêntica e original que você conhece?
KR – Pergunta bastante difícil.
Não há dúvida que os maracatus, caboclinhos, os folguedos folclóricos são os
mais interessantes. Diria também que o urso brincante pela rua, os bois, cavalo
marinho, Mateus, todas essas figuras do folclore nordestino enriquecem o
carnaval e são muito originais. Também citaria a presença desses caboclos de
lança com suas golas bordadas. Há muita coisa no carnaval que é completamente
original, que não existe em outra parte do Brasil.
DP – E como vê o carnaval na
cultura brasileira – a se admitir que exista uma cultura caracteristicamente
brasileira?
KR – Eu diria que é uma das
pedras fundamentais da rica cultura brasileira popular e até certo ponto de
vista, intelectual. O carnaval do Brasil produz obra de arte, literatura,
escultura, até sua própria arquitetura – o sambódromo do Rio de Janeiro - , o
carnaval é tão interligado na cultura brasileira que é difícil imaginar um
Brasil sem o carnaval. É uma pedra tão fundamental na cultura brasileira como o
futebol, o jogo do bicho, feijoada no sábado à tarde, todas essas tradições
tipicamente brasileiras.
DP – Falando em carnaval...dentro
das manifestações populares brasileiras você estabeleceria algum paralelismo
entre o carnaval e o futebol, as duas grandes paixões de massa no país?
KR - Estão tão interligados que
cada vez que o Brasil ganha um jogo de futebol sai um grupo carnavalesco
festejando. Também há muitos jogadores de futebol, principalmente nas escolas
de samba do Rio, e aqui no Recife, integrados ao carnaval. Ambos, o carnaval e
o futebol, expressam e revelam essa extraordinária e exuberância da
personalidade brasileira.
DP – Você me disse que antes de
aprender a falar português, você cantava nossas músicas, sem saber nada da
língua, e dançava o samba. Sei também que você é muito versada no passo e lhe
pergunto: Como uma grande conhecedora da coreografia do passo, você acha que
este poderia chegar a ser um dos elementos configuradores de um possível balé
brasileiro?
KR – Bem, seria um balé de
bailarinos bastante individualistas porque não se pode colocar uma fila de
passistas fazendo a mesma coisa. O passista faz o que quer. Agora, por exemplo,
nos desfiles dos clubes, que vão colocando as alas dos passistas, isto funciona,
é uma beleza, é um balé folclórico na passarela. Será então levar o que
acontece na passarela para o palco – e isto será um balé. Mas um balé de todo o
mundo fazendo coisas diferentes, que é uma das características do passo. E é
balético, não há dúvida.
DP – Eu tenho uma curiosidade em
relação ao trabalho que você realizou aqui e qual foi o feito – palavras suas –
nos morros e mangues da cidade: como uma gringa era tratada, então, no meio de
nossa mulatice?
KR – (risos) Oh,
maravilhosamente! Isto foi a coisa mais estranha que me aconteceu aqui. Digo no
meu livro que foi das coisas mais divertidas. Quando eu andava lá pelo alto de
Nossa Senhora de Fátima (antigo Alto da Foice), parece que as pessoas nunca tinham
visto uma criatura como eu. Todo mundo se aglomerava em torno de mim,
principalmente os meninos, e eu ouvi alguém dizer (sem saber que eu estava
escutando), que eu era “a senhora galega da fala estranha”. Eu achei isso uma
beleza. O povo sempre me aceitou maravilhosamente. E isso eu achei até
milagroso. Você veja, uma mulher estrangeira aparecer na porta de um barraco,
segurando um caderno, fazendo uma porção de perguntas, algumas até indiscretas,
e o povo receber tão bem. Não sei explicar, o povo sempre me tratou com a maior
gentileza e sempre lhe serei gratíssima por isso. Para mim uma das maiores
experiências da minha vida foi este contato, esse entrosamento, esse amor do
povo maravilhoso dos subúrbios recifenses.
Dona Santa, uma lenda do carnaval pernambucano. Fundou o Maracatu Estrela do Oriente, dirigiu os maracatus Leão Coroado e durante 16 anos, o Nação Elefante. Foi coroada rainha do maracatu em 1947. Faleceu em 1962, aos 85 anos. Foto: Fundaj.DP – E desse tempo que lembranças
você guarda com mais emoção?
KR – Tantas lembranças, Por
várias noites visitei Dona Santa na sede do seu maracatu, na época que ela
estava saindo toda trajada de rainha com seu cortejo para visitar outro clube
popular. Tive a honra e o privilégio de acompanhá-la nessas visitas. Uma vez
fui lá no Alto do Céu (Beberibe), subi a pé porque não havia caminho
pavimentado e era um dia de calor infernal. Subi e estava morta de cansaço e de
sede, e as pessoas ali bem rústicas, a maioria era do Interior, mandaram vir
água mineral, café com leite para servir a uma pessoa completamente estranha.
Eu achei uma generosidade inacreditável. Momentos como esse são inesquecíveis.
E a coisa mais linda que eu conheço é a vista da cidade do Recife desde os
altos, como o Morro da Conceição, o Alto do Mandu. O Recife lá longe, brilhando
ao luar. É uma lembrança fantástica. E sobre isso eu posso falar horas e horas.
DP – Você assistiu ao nosso
carnaval agora, depois de ficar tanto tempo longe do Brasil. E certamente
observou que o carnaval mudou em algo, surgiram agremiações e carnavalescos
novos, e surgiu um grupo muito forte, que arrasta uma multidão extraordinária,
que é o Galo da Madrugada. Você acha que o Galo da Madrugada é o aburguesamento
do carnaval?
KR – O carnaval tem de mudar com
o tempo e tem de aburguesar-se também...
DP - ... ou a burguesia de
carnavalizar-se ...
KR – (risos) Exatamente. Um ou
outro. Mas um carnaval que não está em plena evolução, mantendo seu dinamismo,
é condenado a decadência ou ao desaparecimento. Aliás, isso aconteceu em certos
dos antigos carnavais da Europa, que tornaram-se arcaicos, não combinavam com
os tempos, e o povo perdeu interesse. O aburguesamento do carnaval é uma
exigência de sua vitalidade. Claro que a burguesia não faz coisas tão lindas
como o povo, isto é um ponto de vista pessoal. Mas carnaval é para todo o
mundo, carnaval é para brasileiros, e até para Katarina Real. Todo mundo pode
participar a sua própria maneira.
DP – A propósito dos carnavais
europeus, você teve a oportunidade de conhecer e/ou de fazer estudos
comparativos entre o nosso carnaval e o de outros países, não necessariamente
da Europa?
KR – Umas das minhas
especialidades é o estudo de carnavais do mundo inteiro, no espaço e no tempo.
Minha tese de doutoramento foi um grosso volume estudando as origens do
carnaval, desde as Saturnálias de Roma e as festas pagãs da Grécia antiga, do
Egito, da Babilônia. E até as Saturnálias dos judeus, que era a Festa do Purim.
Moramos vários anos nas Caraíbas e fiz uma pesquisa sobre o carnaval de
Trinidad e das Guianas. Trinidad tem esses músicos maravilhosos dos grupos de
tambores de aço. Fiz pesquisa entre eles. Não quero criticar, mas os pretos que
tocam tambores de aço não me trataram com a gentileza do povo brasileiro. Foram
gentis de alguma forma, mas não houve o entrosamento que tive aqui. Há também o
carnaval de Nova Orleans, o Mardi Gras, um carnaval bem diferente do
brasileiro, bastante afrancesado, mas que tem a sua parte popular – os negros
das orquestras de jazz desfilam, por exemplo. Em suma, sempre que haja um
carnaval para pesquisar, estou lá com meu caderno. Mas de todos esses carnavais
que conheço, não tenho dúvida de que o do Brasil é o mais interessante, o mais
vibrante e o mais dinâmico.
DP – O que mudou no carnaval
pernambucano, na sua opinião?
KR – Na sua estrutura, nas suas
características e na sua personalidade não vejo muita diferença. O carnaval de
Pernambuco desde a década de 1960 tem crescido fantasticamente. O crescimento
do carnaval em si, o crescimento do número de integrantes em todas as
agremiações, clubes, blocos, maracatus, caboclinhos, as escolas de samba. Eu
fiz um fichário enorme, na década de 60, com uma ficha sobre cada clube
carnavalesco. As fichas iam de 1961 a 1968. Trouxe-as agora para o Recife. E
veja que interessante: aparece uma escola de samba, por exemplo, creio que
Império do Samba, ou Império do Asfalto, onde registrei a observação: “Escola
de samba enorme. Duzentas pessoas. Batucada de cinquenta pessoas”. Esse mesmo
grupo saiu este ano com duas ou três mil pessoas. Isso é só para citar um
exemplo do crescimento. A coreografia dos grupos, hoje, é mais desenvolvida.
Tem mais grupo em cada categoria. Eu me alegro em ver que o dinamismo do
carnaval continua.
DP – Na sua opinião o apelo
erótico é válido nos desfiles carnavalescos?
KR – Ah, bom, um brasileiro muito
inteligente me disse há alguns anos: “Olhe Katarina, o brasileiro foi formado
de três raças, duas das quais andavam quase que inteiramente nuas, o índio da
floresta tropical e o africano. Então, o europeu ia botar roupa nesse povo, num
país tropical? O índio na sua nudez permitida é a criatura mais feliz do mundo.
Bote roupa nele e ele morre de calor, com qualquer chuva pega um resfriado, ou
pneumonia, e morre em poucos minutos”. Então eu acho esse negócio de nudez
próprio do brasileiro, que volta a sua própria natureza. Vamos tirar toda essa
roupa do carnaval (risos)... Bem, isso é mesmo surpreendente para os que vêm de
fora. Mas eu acho uma beleza tudo o que o povo faz, se é do seu gosto.
DP – Você deve ter visto alguma
coisa, este ano, pela televisão, do carnaval do Rio de Janeiro...
KR – Sim, eu conheço o carnaval
do Rio desde a década de 1930. Até parece que estou ficando bem velhinha. Mas
estive aqui ainda menina. E depois, na década de 1950, tive a oportunidade de
ver o crescimento das escolas de samba. E vi na TV Manchete o desfile das
escolas de samba até altas horas da madrugada, quando devia estar dormindo para
me recuperar de outro dia de pesquisa de campo no Recife. Todo mundo sabe que o
desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro é um dos grandes espetáculos do
mundo. Cada vez fica maior e mais fantástico. Eu não sei onde vai parar. Tudo
muito bonito e crítico...
DP - ... talvez o povo seja o
maior crítico social...
KR – Sim, Eu gostei imensamente
da Beija-Flor com aquele negócio de “luxo e lixo”. Muitas dessas belezas do
carnaval deveriam ser vistas nos Estados Unidos. Mas há um ponto interessante
que acho que os brasileiros não sabem e vale a pena anotar: o carnaval
brasileiro vai influindo nos Estados Unidos bastante. Quase todas as cidades
norte-americanas têm baile de carnaval brasileiro, muito frequentados pela
população. Em San Diego, na Califórnia, onde moro, há uma sociedade brasileira
que todo o ano promove um baile de carnaval, de que sempre participo. Enche-se
não somente de brasileiros e americanos, mas de toda colônia latina e de boa
parte dos negros dos Estados Unidos, que raramente é vista num baile social. Os
negros americanos naturalmente adoram o carnaval. Los Angeles tem três ou
quatro bailes de carnaval brasileiro, San Francisco também, Nova York acho que
tem pelo menos uns dez. E o que eu acho mais interessante ainda é que San
Francisco estão surgindo escolas de samba, formadas de estudantes que se reúnem
uma vez por semana para afinar a batucada. E aí você pode ver moças de cabelos
louros e olhos azuis tocando tamborim, pandeiro etc. Há um grande desfile de
escolas de samba em San Francisco, em junho, que já tive oportunidade de ver.
Aliás, muitos deles são ensaiados por uma bailarina brasileira que mora em San
Francisco. Saem escolas com porta-estandartes e ala de malabaristas. Não é tão bem-feito
como no Brasil, mas o americano está tentando. (Finalizou).
Katarina Real, faleceu em 6 de
junho de 2006, na cidade de Tucson, no Arizona (EUA), aos 79 anos.
Por: Jânio Odon/VOZES DA ZONA
NORTE
Fonte: Diário de Pernambuco e
Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj).