Terça-feira, 29 de maio de 1969, na sede da Arquidiocese de Recife e Olinda, o então arcebispo Dom Helder Câmara aguardava a confirmação sobre a identidade de um corpo , com tiros e marcas de tortura, encontrado nos arredores da Cidade Universitária. Outros amigos também se faziam presentes e, ao telefone, Dom Lamartine confirmava o que todos temiam: era sim o padre Antônio Henrique Pereira, 28 anos, coordenador da Pastoral da Juventude e professor de formação religiosa do colégio Marista do Recife, um dos mais tradicionais da cidade. O padre Henrique que tinha três anos e meio de sacerdócio, filho mais velho de uma família de onze irmãos, e o mais querido para o seu pai, José Henrique Pereira, de 52 anos, funcionário da DAC no aeroporto dos Guararapes.
Um crime, na falta de pistas seguras, como este, desperta logo uma pergunta: qual a razão? Dom Aloísio Lorscheider, secretário-geral dos bispos (CNBB), considerou “inexplicável, tendo em vista o conjunto da vida do padre, que era honesto e correto”. Dom Helder, desde o primeiro momento, sustentava ter sido um crime político, argumentava na época, que “se vinha notando um nítido interesse de eliminar as pessoas que eram jovens ou que trabalhavam junto à juventude”. Relacionou, inclusive, a morte do padre ao atentado sofrido, meses atrás, por Cândido Pinto, estudante de engenharia e Presidente da extinta União dos Estudantes de Pernambuco- baleado na coluna, que ficou paralítico. Falou também numa lista de trinta e duas pessoas- “ o meu nome mesmo era o primeiro da lista” – que correriam o mesmo perigo do padre Henrique.
O corpo do Pe. Henrique, sinais de tortura. |
Já havia sido avisado por pessoas amigas sobre as duas próximas: padre Zildo Rocha, Diretor do Seminário de Olinda, e o estudante Marcos Burle de Aguiar, cassado como estudante da Faculdade de Medicina da Universidade Federal, onde foi presidente do Diretório Acadêmico. Dom Helder relutou em citar os dois nomes, afirmando ter medo de assustar os parentes das pessoas visadas. Mas disse que os atentados eram sempre precedidos de telefonemas anônimos de ameaças, como no caso de Cândido Pinto. A residência de Dom Helder também já havia sofrido dois atentados, onde inclusive metralharam a fachada da casa. Nas duas vezes, ele não se encontrava lá.
Dom Basílio Penido, prior do Mosteiro de São Bento, em Olinda, e presidente regional da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB), não confirmou nem desmentiu que tratava-se de um crime político. Formado em medicina, assistiu à autópsia e afirmou que os ferimentos sofridos pela vítima foram todos acima do pescoço, que apresentava as marcas de uma corda. E disse: “Acredito que o padre Henrique não tenha sido enforcado, mas arrastado. A cabeça apresentava várias contusões e o ferimento de três tiros”. As declarações de Dom Basílio dava um ponto final nas especulações de que o padre havia sido castrado, dando origem à hipótese de um crime passional ou de vingança da honra. O diretor do Departamento de Investigações da Secretaria de Segurança Pública, Bartolomeu Gibson, referindo-se também a perícia, disse ter conhecimento que o crime foi cometido por mais de duas pessoas e que o religioso chegou a oferecer resistência antes da perder a vida.
Na noite de segunda-feira, 28/5/1969, quando foi visto pela última vez, o padre Henrique saía de uma reunião de pais e filhos, no bairro do Parnamirim, afastado do Centro, às 22h30. Recusou uma carona, dizendo: “Os meus não são os vossos caminhos”.
Logo adiante, viram-no entrando numa perua Rural azul, ocupada por quatro desconhecidos. Na madrugada do dia seguinte, um morador próximo ao local onde foi encontrado o cadáver do padre contou que por volta das duas ou três horas, ouviu alguns disparos de armas de fogo.
Na quarta-feira, 30/5/1969, o padre Henrique foi sepultado. O cortejo fúnebre que levou o padre Henrique, saiu da igreja do bairro do Espinheiro até o cemitério do bairro da Várzea, num percurso de 10Km, houve incidentes entre acompanhantes e a polícia, que tentava abortar a manifestação em que se transformou o cortejo, com faixas de “Abaixo a Ditadura”.
Dom Helder Câmara bastante emocionado durante o cortejo fúnebre até o cemitério da Várzea, todos acenavam com lenços brancos, no último adeus ao padre Henrique. Foto: Veja
TRINTA DIAS DEPOIS- O juiz Aluísio de Melo Xavier, Presidente da Comissão Judiciária de Inquérito sobre a morte do padre Henrique, foi visto quarta-feira, 25/6/1969, entrando no Cine Art-Palácio (que ficava na rua da Palma) para assistir “A verdade vem do alto”, filme sobre o milagreiro espírita Arigó. À tarde, naquele mesmo dia, tinha saído pelas ruas do Recife membros da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Prosperidade que, com bandeiras vermelhas e altos brados, condenavam a infiltração comunista no clero. Junto as portas de todas as igrejas e capelas do Recife, os quadros de aviso anunciavam para sexta-feira, 27/6/1969, a missa pelo trigésimo dia do falecimento do padre Henrique.
O estudante Rogério Matos Nascimento, 26 anos, toxicômano, morador da Rua da Baixa Verde, no bairro do Derby, foi preso como principal suspeito, preso em 27 de maio. O acusado tinha amizade com o padre e freqüentava sua casa, e que na madrugada do crime, que só se tornou público no dia seguinte, comunicou à sua namorada Elizabeth Ribeiro que o padre havia sido morto. O juiz afirmou que havia indícios de que Rogério seria o criminoso, mas que não havia provas suficientes para condená-lo. A Comissão foi formada pelo Governador Nilo Coelho quatro dias depois do crime, a 30 de maio. Mas só começou a funcionar a 6 de junho.
O balanço até então, não era muito animador, ela havia desistido de procurar a Rural branca e azul ou verde que deu carona ao padre horas antes do crime, porque o Departamento de Trânsito descobriu uma longa lista de Rurais desaparecidas em Pernambuco. Com muito esforço, a polícia havia conseguido descobrir no Rio Grande Norte o provável dono da corda de pescar encontrada junto ao cadáver. Mas a Comissão concluiu que o homem nada tinha a ver com o crime, nem a corda que foi deixada perto do corpo só para atrapalhar.
O SUSPEITO- Na cela 13 do Raio Sul da penitenciária, Rogério Matos do Nascimento, olhos verdes fundos e rosto estático, repetia: “Eu sou inocente”. De família rica, seu pai na ocasião,era sócio de uma empresa comercial e dono de vários imóveis. Rogério, em 1967, saiu da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) para o quarto período de Economia da Universidade Católica (UNICAP), mas trancou a matrícula e só voltou às aulas este ano. Em fevereiro, o padre Paulo Soares, Diretor da Faculdade, recebeu carta anônima com um recorte do jornal que contava a detenção de Rogério por tráfico de entorpecentes. O padre anula então a matrícula do jovem.
Antes disso, contou Álvaro da Costa Lima, ex- Secretário de Segurança Pública, anticomunista ardoroso e adversário de Dom Helder Câmara, Rogério quis tornar-se auxiliar da polícia: “Conheci Rogério quando eu era delegado do DOPS. O moço era estudante e me procurou duas vezes, querendo ser meu informante na Universidade Federal, dizendo possuir o nome de muitos estudantes subversivos. Pedi, nas duas vezes, uma declaração por escrito. Depois desse pedido, ele não voltou mais e nunca mais o vi”.
O advogado de Rogério, Boris Trindade, que tinha 31 anos, ex-porteiro do Teatro Almare e ex-colunista social. Pierre era considerado hippie por causa de seus sapatos mocassinos e seus cabelos compridos, queixava-se de que o advogado da família do padre, Fernando Tasso, tenha participado do inquérito junto com a Comissão. Tasso já foi acusador de Rogério, num processo por estupro e, num encontro na prisão, foi esbofeteado pelo estudante. A participação de Tasso no inquérito, entretanto, foi legal e ele mesmo lembrou: “Em 1945, mataram meu irmão e os advogados de papai acompanharam todas as investigações”. Tasso e Trindade concordavam em algumas coisas: “As forças policiais do Estado estão falidas, A polícia de Pernambuco só sabe que Caim matou Abel por causa da marchinha, porque nem na bíblia ela foi investigar”, alfinetou Trindade. Ambos opinaram também que o exército tinha o máximo interesse na elucidação do crime”. Novos boatos surgiram no Recife, na semana passada, começou a ser dito que o padre Henrique, numa conferência, teria acusado o vereador Wandenkolk Wanderley, velho inimigo de Dom Helder, de ser dono de 80% dos prostíbulos recifenses. Wandenkolk tranqüilo respondeu: “O padre foi morto pela gang da bolinha, essa juventude criada por Dom Helder.
No final de março de 2004, foi lançado um vídeo produzido pelos estudantes de jornalismo da UNICAP, Shirley Pacheco, Lana Reis e Bruno Moreira, intitulado “Memórias de um tempo sem memória”, muito interessante onde até o major Ferreira (do Escândalo da Mandioca) foi citado como acusado do crime que abalou o Recife e até hoje não foi elucidado.
Por: Jânio Odon de Alencar
Fonte: Diário de Pernambuco e Revista Veja
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