quinta-feira, 21 de julho de 2022

Recife, uma cidade estagnada

 

Bairro de Santo Antônio, Recife. Segunda metade do século XIX. Litografia: Alfred Ducasble.

A importância da história é que podemos fazer uma reflexão entre o passado e o presente e nos perguntar o que foi feito para melhorar nossas vidas em relação ao passado. Neste caso, a nossa querida cidade do Recife. Através desta crônica publicada no final do século XIX, por quem vivenciou aqueles acontecimentos, podemos fazer um paralelo entre o passado e o presente e mergulhar no tempo através da leitura e perguntarmos: afinal de contas o que mudou?

Recife, quarta-feira, 24 de maio de 1899

Ontem, conversando com um amigo que há dias chegara do Sul e que estava ausente desta capital desde 1889 (dez anos), tivemos o desprazer de ouvir de sua boca estas palavras dura, mas verdadeiras.

- Não tem progredido nada a sua bela terra.

- É a mesma a disposição das ruas, é o mesmo o tipo das casas, é a mesma a porcaria...

- Só é bonito o que a natureza fez.

Corramos; e não podemos conter o nosso ressentimento.

Por toda parte se manifestam os estímulos dos melhoramentos: as cidades se remodelam pelos princípios da moderna arquitetura e da moderna higiene; crescem; embelezam-se; tornam confortáveis.

Somente nós, pagando de ano para ano novos e mais pesados impostos, permanecemos numa estagnação de causar lástima.

Como se fossemos toupeiras, acostumamo-nos a viver numas tocas, numas espeluncas, numas habitações baixas, escuras, úmidas, feias e, o que mais é, rodeadas de pântanos cujas infecções palustres espalham pelos arredores o cheiro das podridões e os miasmas das febres mortais, e não há de sair disto...

Pouco a pouco vamos ficando no estado deplorável de não podermos oferecer uma hospedagem em nossa, por escárnio chamado Veneza Americana*, aos estrangeiros, nem mesmo aos compatriotas de outros Estados, porque dói-nos profundamente vê-los caírem, à nossa vista. Vítimas das pestes de que se acha saturada a nossa atmosfera.

Nós mesmos, aclimados num recanto do burgo, já temos receio de mudar de residência com medo dos micróbios dos outros bairros. E os nossos diretores políticos, preocupados com a maldita politicagem em que se estragam, se atrofiam no talento e no caráter, não fazem nenhum esforço para nos arrancar a essa degradação!

O largo do Hospício* é aquele aterrado de lixo de dez anos; o viveiro do Muniz* é aquele pasto de animais vadios, que estamos cansados de denunciar; as estradas suburbanas são aqueles lagos que nós sabemos; as vias urbanas são aquelas misérias de calçamento que os edis conhecem. Os cães são aquelas afrontas ao asseio que os fiscais não veem; as latrinas e os mictórios públicos são aquelas imundícies que a toda gente indignam; e nem uma planta da cidade existe ainda por onde se regulem as demolições e licenças para reedificações, afim de ao menos no futuro, virmos a possuir uma coisa mais decente do que a que hoje serve de cabeça de uma das mais importantes circunscrições da União Brasileira.

(Artigo publicado pelo Jornal Pequeno, há 123 anos, na data supracitada).

*Veneza Americana: denominação dada à época a cidade do Recife em comparação a cidade italiana de Veneza, que também é ilhada pelo rio. Americana, porque o Recife fica na América...do Sul. O Recife nos dias atuais é denominado “Veneza Brasileira”.

*Largo do Hospício, onde atualmente fica a Rua do Hospício.

*Muniz, referindo-se à rua.

Por: Jânio Odon/ BLOG VOZES DA ZONA NORTE.

 

 


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