Bairro de Santo Antônio, Recife. Segunda metade do século XIX. Litografia: Alfred Ducasble.
A importância da história é que
podemos fazer uma reflexão entre o passado e o presente e nos perguntar o que
foi feito para melhorar nossas vidas em relação ao passado. Neste caso, a nossa
querida cidade do Recife. Através desta crônica publicada no final do século XIX,
por quem vivenciou aqueles acontecimentos, podemos fazer um paralelo entre o
passado e o presente e mergulhar no tempo através da leitura e perguntarmos:
afinal de contas o que mudou?
Recife, quarta-feira, 24 de maio
de 1899
Ontem, conversando com um amigo
que há dias chegara do Sul e que estava ausente desta capital desde 1889 (dez
anos), tivemos o desprazer de ouvir de sua boca estas palavras dura, mas
verdadeiras.
- Não tem progredido nada a sua
bela terra.
- É a mesma a disposição das
ruas, é o mesmo o tipo das casas, é a mesma a porcaria...
- Só é bonito o que a natureza
fez.
Corramos; e não podemos conter o
nosso ressentimento.
Por toda parte se manifestam os
estímulos dos melhoramentos: as cidades se remodelam pelos princípios da
moderna arquitetura e da moderna higiene; crescem; embelezam-se; tornam confortáveis.
Somente nós, pagando de ano para
ano novos e mais pesados impostos, permanecemos numa estagnação de causar lástima.
Como se fossemos toupeiras, acostumamo-nos
a viver numas tocas, numas espeluncas, numas habitações baixas, escuras,
úmidas, feias e, o que mais é, rodeadas de pântanos cujas infecções palustres
espalham pelos arredores o cheiro das podridões e os miasmas das febres
mortais, e não há de sair disto...
Pouco a pouco vamos ficando no
estado deplorável de não podermos oferecer uma hospedagem em nossa, por
escárnio chamado Veneza Americana*, aos estrangeiros, nem mesmo aos compatriotas
de outros Estados, porque dói-nos profundamente vê-los caírem, à nossa vista. Vítimas
das pestes de que se acha saturada a nossa atmosfera.
Nós mesmos, aclimados num recanto
do burgo, já temos receio de mudar de residência com medo dos micróbios dos
outros bairros. E os nossos diretores políticos, preocupados com a maldita
politicagem em que se estragam, se atrofiam no talento e no caráter, não fazem
nenhum esforço para nos arrancar a essa degradação!
O largo do Hospício* é aquele
aterrado de lixo de dez anos; o viveiro do Muniz* é aquele pasto de animais
vadios, que estamos cansados de denunciar; as estradas suburbanas são aqueles
lagos que nós sabemos; as vias urbanas são aquelas misérias de calçamento que
os edis conhecem. Os cães são aquelas afrontas ao asseio que os fiscais não veem;
as latrinas e os mictórios públicos são aquelas imundícies que a toda gente
indignam; e nem uma planta da cidade existe ainda por onde se regulem as
demolições e licenças para reedificações, afim de ao menos no futuro, virmos a
possuir uma coisa mais decente do que a que hoje serve de cabeça de uma das
mais importantes circunscrições da União Brasileira.
(Artigo publicado pelo Jornal
Pequeno, há 123 anos, na data supracitada).
*Veneza Americana: denominação
dada à época a cidade do Recife em comparação a cidade italiana de Veneza, que também
é ilhada pelo rio. Americana, porque o Recife fica na América...do Sul. O
Recife nos dias atuais é denominado “Veneza Brasileira”.
*Largo do Hospício, onde atualmente
fica a Rua do Hospício.
*Muniz, referindo-se à rua.
Por: Jânio Odon/ BLOG VOZES DA
ZONA NORTE.
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