Há mais de 200 anos, o viajante inglês Henry Koster, retornava da Ilha de Itamaracá durante o inverno de 1815, enfrentando os morros e as matas de Paratibe, Mirueira, Beberibe e Água Fria, em seu retorno para o Recife. Gravura: Ilustrativa.
O texto a
seguir, retrata a trajetória do viajante inglês Henry Koster, no inverno de
1815, quando deixava a Ilha de Itamaracá rumo a Água Fria. Koster faz uma
narrativa das dificuldades enfrentadas por ele e seu guia, Manuel, montados em seus
cavalos num percurso cheio de obstáculos provocados pelas chuvas e os detalhes minuciosos
da região dos povoados de Paratibe, Mirueira, Beberibe e Água Fria e locais que
ainda nem existiam como povoados é o caso de: Santa Casa, Alto da Conquista,
Águas Compridas e Alto do Pascoal, através da antiga Estrada da Boiada. Além de
detalhes sobre a fauna, como personagens que enriquece esta história que
aconteceu há mais de 200 anos. Acompanhe parte dessa linda aventura extraída do
livro “Travels in Brazil” de Henry
Koster, traduzido por Luiz da Câmara Cascudo em 1942 com o título: “Viagens ao
Nordeste do Brasil”.
Antes do
começo das chuvas em 1815, deixei Itamaracá com Manuel, pelas 4 horas da tarde,
bem retardado por ocorrências imprevistas. A temperatura era boa e a lua se
devia erguer brevemente. Esperava uma noite agradável, mas quando estávamos a
umas três léguas da ilha a chuva começou a cair abundantemente, chegando à
plantação de inhame, meia légua adiante, estávamos completamente molhados.
Imediatamente depois desse lugar o caminho tem ao lado uma alta colina, e a
água se precipitava em grande quantidade, cobrindo até os joelhos dos cavalos,
e não obstante, alcançamos a estrada das boiadas e paramos em uma venda á
margem do percurso. Comprei uma grande dose de aguardente e a despejei sobre
minha cabeça e ombros e nas minhas botas, fazendo Manuel o mesmo, e bebemos uma
boa parte. Esse processo é geral. Tendo-o em seguido há algum tempo e mesmo ficando
exposto às chuvas no correr do ano, nada sofri, nem mesmo padecendo outro
ataque de febre, mas é possível atribuir-se o fato as precauções mais a excelência
do clima.
Quando atingimos a povoação de
Paratibe a noite estava fechada. Encontrei Antônio, o homem a quem haviam
armado uma emboscada quando eu residia em Jaguaribe, e pediu-me que ficasse em
sua choupana, mas preferi seguir, embora estivesse ensopado pela chuva. Subindo
a colina além de Paratibe, tinha eu a esperança de uma linda noite porque a lua
clareava, mas só apareceu alguns instantes. No Vale da Mirueira a chuva nos
apanhou novamente e com relâmpagos, e fomos pela floresta, através do vale,
numa treva tão imensa que impedia avistar o cavalo de Manuel, enxergando apenas
pelo clarão dos relâmpagos, embora o animal fosse de uma cor cinzenta,
aproximando-se do branco, e eu estivesse tão vizinho que o encontrava, tocando-o.
Quando chegamos perto da colina que desce para os arredores de do Recife,
recomendei tomar à esquerda porque há um precipício perigoso na direita da
estrada. Não me ouviu ou seu cavalo era teimoso, e seguiu muito pela direita, escorregando
e caindo num ponto a poucas jardas do lugar que devia evitar. Desmontei para
auxiliar Manuel, vendo o que passava apenas pela luz dos relâmpagos. Perguntei
por ele mesmo, seu cavalo e sua pistola e recebi como resposta que tudo ia bem.
Disse-lhe: “Onde está o caminho?” porque volteara tanto, em pontos diversos e
tantas vezes, para socorrê-lo, que não tinha noção do rumo que deveria tomar
para reencontrar a estrada, e, indeciso, por um momento formei a ideia de ficar
no local até que o dia rompesse. Mas, falando a Manuel se ele tinha uma certa
lembrança sobre o caminho seguro, respondeu-me com voz áspera, porque estava
molhado e contundido: “Vejo o caminho, não tenha receio âmo!” Seguiu, e eu
acompanhei-o levando cada qual o seu cavalo. Descemos por uma orla porque a
estrada estava muito escorregadia, devido à chuva e não era possível avançar
doutra maneira. Meu cavalo bateu-me com a cabeça várias vezes e pouco faltou
para que tombasse. A estrada teria seis pés e num lado havia o fundo precipício
formado pelas torrentes na época chuvosa, determinando ao solo desmoronamentos
e, na margem oposta, a declividade é menor, mas é coberta de bosques de arvores
onde é possível perder-se sem luz.
Chegamos ao pé da colina sem
acidentes e quando atingimos a povoação de Beberibe a chuva cessara, a noite
estava clara, não obstante a lua continuar oculta. Cruzamos vagarosamente a
colina além de Beberibe e alcançamos Água Fria, residência de um dos meus
amigos, a duas léguas do Recife, entre uma e duas horas da madrugada. Se o
tempo estivesse bom, teríamos chegado às 8 ou 9 horas da noite anterior. O
instinto (se o posso assim chamar) que os indígenas possuem, assim com grande
número de negros e de mulatos, de encontrar o caminho certo, sempre me
surpreendeu, mas não tanto como nessa ocasião. Eu nada podia enxergar, mas
Manuel estava certamente convicto de conhecer a estrada, ao contrário não
falaria de modo tão arrogante. Ele possuía uma grande reserva de coragem mais
era sempre frio e prudente.
Passei em Água Fria uma das horas
mais agradáveis da minha residência no Brasil. O dono é um cavalheiro inglês ao
qual devo muitas obrigações. Erámos amigos íntimos e me sentia à vontade em
Água Fria como em Itamaracá. O lugar estava em situação desoladora quando ele
tomou posse, e mesmo que o solo não fosse muito propício, o sítio prosperava.
Construíra uma boa casa, edificando galpões, fazendo cercas e plantando árvores úteis e ornamentais. O lugar era infestado pelas formigas vermelhas, mas, com
muito trabalho, as destruíra, escavando o solo para matar os formigueiros.
Detrás da residência havia um lago, de considerável extensão, formado por um
riacho cujo curso parara pelo entulho de areia solta e branca na parte onde
passa a estrada, sendo esta, de uma banda, mais elevada que o lago assim como
os terrenos onde o riacho antigamente corria. Quando as águas descem pelo
inverno o lago transborda e alaga a estrada, mas durante a maior parte do ano o
caminho é seco ou quase seco. Se esse lago fosse drenado, a propriedade de Água
Fria valeria dez vezes mais o que vale atualmente, porque seus limites são
dados pelo mesmo canal do riacho. O lago é coberto de juncos, caniços e ervas,
cujas raízes entrelaçadas formam uma espécie de tecido a flor d’água, não
suportando o peso de um homem, mas exigindo muito esforço para abrir-se uma
brecha através dele. Nesse lago há numerosos jacarés ou aligátores (tipo de
jacarés encontrados na América do Norte e na China), tornando perigosa a
operação de cortar os juncos, necessária para abrir um espaço para bebida e
banho dos cavalos, assim como para guardar a erva seca que será alimento para
os animais no verão. Vou mencionar, entre outras, a família dos lagartos. O
camaleão pode ser citado assim como o teju Assú, que penso ser a” lacerta
teguixin”, esse último é muito comum. Há também o calangro, menor que os outros
dois, e essas espécies são comidas pela gente do povo. A vibra e a lagartixa
são duas espécies pequeninas de lagartos, podendo ser vistas em todos os
lugares, nas casas, nos jardins e nos matos. Fazem mais benefícios que males,
devorando moscas, aranhas, etc, e são, para os meus olhos, lindas criaturas.
Sua atividade, e ao mesmo tempo, sua timidez, agradavam-me.
Viajando para o Recife, através
das matas da Mirueira, ouvi várias vezes o rouco coaxar do “sapo cururu” e também
o “sapo boi” ambos de voz bem desagradáveis e particularmente sonoras, durante
as noites invernosas que descrevi. Os gritos constantes dos grilos, logo que o
sol se põe, raramente deixa de aborrecer os recém-vindos a esse país.
Recordo-me da primeira noite que passei na região, quando da minha chegada a
Pernambuco. Conversando, detinha-me várias vezes, esperando que o rumor
cessasse, depois prosseguia (como sucedeu a várias pessoas) e finalmente já não
ouvia o barulho nem que se fizesse em minha presença. Quando um desses grilos
se instala numa habitação não há sossego antes que o desalojem, devido à
insistência do seu apito...
Por: Jânio Odon/VOZES DA ZONA NORTE.
Fonte: Livro: Travels in Brazil, Henry Koster.
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